Doc do Disney+ celebra beleza, mistério e resiliência dos tigres na Índia
A população mais do que dobrou nos últimos vinte anos
Em O Livro da Selva, o escritor britânico Rudyard Kipling (1865-1936) conta a história de Mogli, um menino criado por lobos que busca conciliar suas duas naturezas: a humana e a animal. No clássico da literatura, depois levado ao cinema, a criança aprende da mãe loba os ensinamentos da floresta, divididos entre a necessidade de caçar para sobreviver e também para não ser caçado. Há, naquele ambiente, algum equilíbrio improvável, e Kipling tratou de não exagerar nas tintas. Com uma exceção: o tigre Shere Khan, representação do mal, da violência e da crueldade. A má fama do bicho é indevida. Ele só tem cara, jeito e rugido ameaçadores. O famigerado vilão provavelmente morreria de fome, já que sua marca — a pata defeituosa — não lhe permitiria ir atrás das presas e se tornaria alvo fácil dos verdadeiros e grandes predadores do planeta, os humanos.
O lindo e enigmático felino é personagem central do ótimo documentário Tigre, que acaba de estrear no Disney+. “É um animal maravilhoso”, diz Vanessa Berlowitz, codiretora da produção, ao lado de Mark Linfield. “No passado, com as câmeras antigas, montávamos um tripé na traseira de um jipe, dávamos uma olhada no bicho e depois ele desaparecia. As novas tecnologias nos permitem decifrar seus hábitos.”
É passeio necessário em torno do gatão e de mudanças ambientais relevantes. Classificado como “em perigo” na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais, o mamífero já esteve em situação mais confortável. Era encontrado em toda a Ásia — Central, Oriental e Meridional. Porém, no último século, perdeu 93% de sua área de distribuição natural e agora só sobrevive de forma dispersa em treze países, da Índia ao Sudeste Asiático, em Sumatra, na China e na extremidade leste da Rússia. Mais de 75% da população mundial dos felinos se concentra nas selvas indianas que inspiraram Kipling — e nelas, eis aí uma boa notícia, a espécie aumentou de forma meteórica nas últimas duas décadas. De acordo com o Instituto da Vida Selvagem da Índia, passou de 1 411 espécimes, em 2006, para 3 682, em 2022.
Não é matemática simples, a esmiuçada em Tigre. A recente e localizada explosão populacional na Índia deve-se a um trabalho de preservação que remonta aos anos 1970, quando o governo local promulgou a Lei de Proteção à Vida Selvagem e demarcou áreas que facilitaram a conservação dos animais e das florestas tropicais. Com exceção de um período entre os anos 1980 e 1990, quando o mercado paralelo de partes do bicho e de sua pele cresceu de forma exponencial, o investimento na manutenção da vida dos grandes gatos sempre foi prioridade, e exige atenção permanente. Há casos de incidentes isolados em áreas urbanas, que assustam as populações. Daí a relevância de campanhas esclarecedoras, de modo a apartar o medo.
O tigre é o animal selvagem mais popular em 44 países do mundo, de acordo com dados de pesquisa do Google — no Brasil, o campeão é a baleia. Mascote esportivo, garoto propaganda de cereal e personagem de desenho animado, além de figura de prosa e verso intrigante, fascina tanto pela beleza quanto pela aura elusiva e o cotidiano solitário. Por isso, é tão difícil registrá-lo na natureza, seja o macho que vaga sozinho em busca de alimento, seja a fêmea que cria seus filhotes até considerá-los aptos a se virarem sozinhos.
Caçá-los, como já fez a rainha Elizabeth nos anos 1960, com pompa e circunstância, em registros celebrados com formosas fotografias, não é mais uma opção. Até porque animais como Ambar e seus quatro filhotes ou o enorme Shankar, protagonistas de Tigre, são essenciais para a manutenção do equilíbrio ambiental e da diversidade das florestas que habitam. O melhor a fazer é tratar de entendê-los e compreender que a turma de Shere Khan têm mais medo de nós, humanos, do que nós deles.
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2024, edição nº 2890