Descobertas genéticas contradizem teoria de ‘suicídio ecológico’ na Ilha de Páscoa
Elas dão novas pistas sobre a população autóctone
Colonizada por navegadores vindos da Polinésia, de onde chegaram de barco por volta de 1200 d.C., Rapa Nui, também conhecida como Ilha de Páscoa, hoje parte do Chile, é famosa por suas cabeças de pedra monumentais. Os mais de 900 moais, como são chamadas as esculturas que chegam a 10 metros de altura e podem pesar mais de 80 toneladas, tornaram-se símbolos dos mistérios que rondam aquela porção da Terra, considerada um dos lugares habitados mais isolados do planeta. Agora, um novo estudo pode elucidar a questão que nunca calou: por que o povo autóctone quase desapareceu do mapa?
Uma equipe multinacional de cientistas sequenciou e analisou os genomas de quinze indivíduos rapanui que viveram entre 1670 e 1950, cujos restos mortais estão no Museu da Humanidade, em Paris, para onde foram levados pelo francês Alphonse Pinart, em 1877, e pelo suíço Alfred Métraux, em 1935. Os pesquisadores analisaram o DNA esperando encontrar vestígios de um colapso populacional, como a queda repentina na diversidade genética. Em vez disso, descobriram que a ilha, na verdade, foi o lar de uma população florescente que aumentou consistentemente até a década de 1860, quando uma invasão de traficantes de escravos peruanos levou cerca de um terço dos nativos para o trabalho compulsório nas colônias. E mais: epidemias de mãos dadas com a atividade colonial europeia reduziram o contingente local a uma centena de pessoas. “Sobrou cerca de 3% da população”, diz Bárbara Sousa da Mota, da Universidade de Lausanne, na Suíça, uma das autoras do estudo, publicado na revista Nature. Os genomas também revelaram que os habitantes da ilha mantinham relações com nativos americanos.
As descobertas ajudam a refutar a teoria do declínio populacional por meio de um “suicídio ecológico” que teria acontecido nos anos 1600. Essa tese ficou famosa por meio do best-seller Colapso, publicado em 2005 pelo geógrafo Jared Diamond. Nele, o pesquisador exibe a suposta tragédia de Rapa Nui como uma advertência contra a superexploração de recursos pela humanidade. “Em apenas alguns séculos, o povo da Ilha de Páscoa destruiu sua floresta, levou suas plantas e animais à extinção e viu sua sociedade complexa mergulhar no caos e no canibalismo”, escreveu Diamond.
A nova pesquisa também joga luz sobre outra grande controvérsia. Por muito tempo, questionou-se se os antigos habitantes da ilha teriam interagido com os indígenas americanos antes do contato com os europeus, que aconteceu pela primeira vez em 1722. A análise genética dos atuais descendentes dos rapanui mostra que eles são 90% polinésios e 10% americanos. Mas, em 2017, um estudo de restos mortais de ilhéus que viveram séculos atrás não encontrou vestígio da interação, que agora é finalmente revelada.
Resta saber se foram os rapanui que chegaram às Américas ou o contrário. Pesquisas adicionais ainda são necessárias. Mais relevante, porém, foi o momento em que esse encontro aconteceu, em algum período entre 1250 e 1430, antes, portanto, da chegada de Colombo às bandas de cá, em 1492. A nova evidência ainda dá peso à hipótese de integração entre os habitantes da ilha polinésia e a América do Sul.
Os novos fatos representam um avanço na compreensão sobre o povo de Rapa Nui e seus ancestrais. “Talvez esse estudo seja a pá de cal final nessa narrativa, transformando-a em uma história sobre a resiliência humana e a habilidade de utilizar os recursos de forma sustentável em meio às mudanças ambientais”, afirmam Stephan Schiffels e Kathrin Nägele, especialistas em arqueologia e genética do Instituto Max Planck, na Alemanha, em uma análise independente publicada junto ao estudo. “Conseguimos, finalmente, deixar claro que o uso dos recursos da ilha teve menos impacto do que o contato dos europeus com essa população”, complementa Bárbara. Além disso, as novas evidências foram obtidas em constante diálogo com a comunidade local, e reforçam o desejo de repatriar os ancestrais rapanui carregados para museus distantes. Talvez essa seja a hora de levá-los de volta para casa, de onde poderão contar sua história de sobrevivência e resiliência.
Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2024, edição nº 2912