Cresce o número de viagens de lazer à Antártica
Apesar dos preços elevados, o mercado está aquecido — mas é preciso cuidado com a preservação do continente
Enquanto cerca de 140 cientistas e técnicos brasileiros arrematavam, no início de janeiro, os detalhes para a reinauguração da Estação Antártica Comandante Ferraz, na Baía do Almirantado, não muito distante dali o navio de cruzeiro Coral Princess, da empresa americana Quark Expeditions, deslocava-se pelas águas hipergeladas do continente, levando a bordo aproximadamente 200 passageiros — em uma palavra, turistas. Cada um deles desembolsara algo entre 10 000 e 30 000 dólares pela aventura de estar naquele cenário deslumbrante, a uma temperatura de 1 grau, considerada agradável para o verão antártico.
Inaugurada em 1991, com a comercialização de pacotes para o Polo Norte, a Quark é uma das empresas líderes do turismo na Antártica, ao lado da canadense One Ocean Expeditions e da norueguesa Hurtigruten. No Brasil, é parceira do velejador Amyr Klink e de sua mulher, Marina. Basicamente, o casal participa das viagens como convidado vip e dá palestras sobre a região. “Somente nesta temporada, tivemos 150 brasileiros embarcados conosco. Acreditamos que o número crescerá nos próximos anos”, disse a VEJA a canadense Abbey Weisbrot, uma das guias das expedições realizadas pela Quark. No verão passado — no inverno, o mar se congela —, apenas dez passageiros daqui viajaram com a companhia.
Os pacotes turísticos para a Antártica começaram no Brasil em 1997. A pioneira foi a Antarctica Expeditions, representante no país da Quark e de outras empresas, como a Polar Latitudes, americana, e a Antarctica21, chilena. Na maioria das vezes, os turistas embarcam em Ushuaia, na Argentina, e navegam em direção ao temido Estreito de Drake, até alcançar a Península Antártica. De acordo com a Associação Internacional de Operadores de Turismo Antártico (IAATO), os passageiros americanos foram os que mais visitaram o continente entre 2018 e 2019 — 17 679 viajantes, 32% do total. A China ficou em segundo lugar, com 15% dos visitantes (8 149 pessoas), e a Austrália em terceiro, somando 6 405 passageiros (12% dos embarcados). Diante da intensa procura de pacotes por parte dos estrangeiros, os turistas brasileiros “costumam planejar sua viagem ao continente com um ano de antecedência”, afirma Zelfa Silva, fundadora da Antarctica Expeditions.
A IAATO estima que no atual verão antártico, que teve início em novembro e termina em março, o número de turistas chegue a 78 500. Em comparação com o mesmo período da temporada anterior, isso representaria um salto de 40%. Segundo a associação, há 56 embarcações credenciadas para o turismo no local; juntas, elas têm capacidade de transportar 51 707 passageiros.
A promoção do turismo na região é uma zona cinzenta. O continente é de ninguém e, ao mesmo tempo, de todos os países. O Tratado da Antártica, de 1959, estabeleceu que as nações que mantêm investimentos de forma contínua e estações de estudos têm direito a voto e veto sobre as decisões que regem a localidade. O Brasil é um dos 29 países que estão nesse grupo, que inclui, por exemplo, Estados Unidos, China e Austrália. O acordo deixa claro que a região é destinada à promoção da ciência e da paz. Contudo, não existe referência explícita sobre a prática do turismo por lá. Para Klink, não há polêmica sobre a questão. “A iniciativa que mais promove a paz no mundo é o turismo. Trinta anos atrás, fiz parte dos puristas — era contra o turismo. Depois de ver o encantamento de quem voltava de uma viagem à Antártica, passei a defender esse tipo de incursão, justamente para proteger o continente”, explica o velejador.
O aumento crescente do número de pessoas que visitam a Antártica já começa, entretanto, a deixar rastros incômodos. Foi o que constatou o botânico Paulo Câmara, professor da Universidade de Brasília, que conduz um projeto de pesquisa para mapear o DNA da biodiversidade de plantas locais. Trabalhando na Ilha Decepção, a três horas da Ilha Rei George, onde se localiza a estação brasileira, Câmara coletou amostras de solo que continham DNA de cebola, de feijão-moyashi e de maconha. Ora, nada disso existe na Antártica. Ao recolher amostras de uma área protegida, frequentada apenas por cientistas, o pesquisador não encontrou nada de estranho. “Isso não quer dizer que o turismo seja um mal em si, porém precisamos monitorar o que está ocorrendo na região”, pondera Câmara. Um campo de musgos, por exemplo, muito frequente na paisagem da Península Antártica, pode levar 600 anos para ser formado. Não dá sequer para imaginar que algo tão precioso assim possa ser destruído. O turismo, inclusive para continuar vivo, deve ser o primeiro a zelar pelos espetaculares cenários do planeta — como é o do continente gelado.
Publicado em VEJA de 12 de fevereiro de 2020, edição nº 2673