Conheça Rafael Yuste, cientista que defende os neurodireitos
Em entrevista a VEJA, pesquisador falou sobre as dificuldades, os benefícios e os perigos de compreendermos melhor o cérebro humano
“O cérebro é a matéria mais brilhante do universo”. Foi assim que começou a palestra de Rafael Yuste em sua passagem pelo Brasil, no ciclo mais recente do Fronteiras do Pensamento, série de conferências sobre temas relacionados à contemporaneidade. Escolhido pela Nature como um dos cientistas mais influentes do mundo, o pesquisador é um dos responsáveis pelo desenvolvimento das neurotecnologias e, ciente dos perigos que essas ferramentas podem trazer, também é um vocal defensor dos neurodireitos.
Neurotecnologias são interfaces entre cérebro e máquina. “São métodos e ferramentas para mapear e mudar as atividades cerebrais”, afirmou Yuste em entrevista a VEJA. Por mais estranho que possa soar, os exemplos já são palpáveis – em maio, um desses dispositivos ajudou um homem a andar depois de 12 anos vivendo como paraplégico. O mesmo tipo de ferramenta poderá permitir que duas pessoas se comuniquem “com a força do pensamento”, por exemplo, ou se conectem à internet sem a necessidade de aparelhos como smartphones e computadores.
A ideia é promissora, pois além de aumentar as capacidades cognitivas e mentais dos seres humanos, também poderá ajudar a tratar doenças cerebrais que hoje não têm cura e vão desde condições neurológicas, como as doenças de Alzheimer e Parkinson, até psiquiátricas, como ansiedade, depressão e transtorno pós-traumático.
Mas as coisas não param por aí. Em seu laboratório, na Universidade de Columbia, em Nova York, Yuste conseguiu utilizar esse mesmo tipo de tecnologia para inserir memórias e manipular o comportamento de ratos. “A neurotecnologia tem muitos benefícios científicos e médicos, mas essas ferramentas são neutras e podem ser utilizadas de maneiras positivas ou negativas”, afirma o especialista.
Neurodireitos
É por isso que ele tem rodado o mundo para falar sobre os neurodireitos. Eles são cinco: privacidade mental, que impedirá que pensamentos sejam acessados sem permissão; identidade pessoal, que protege o indivíduo de ter a personalidade manipulada; livre arbítrio, que garantirá que ferramentas não induzam tomadas de decisão; acesso equitativo a neuroaumentação, que pretende impedir que essa tecnologia seja utilizada para gerar mais desigualdade; e proteção contra introdução de preconceitos e informações má intencionadas, que tentará diminuir os vieses dos equipamentos.
E eles não são um exagero. Segundo o pesquisador, empresas privadas já investiram mais de 30 bilhões de dólares nesse tipo de pesquisa. Caso não haja uma regulamentação, companhias como a Neuralink, fundada por Elon Musk, poderão utilizar informações privadas ou inconscientes para fins comerciais ou políticos, por exemplo.
O Chile tomou a dianteira nesse processo. Em 2021, o país foi o primeiro do mundo a aprovar uma reforma em sua Carta Fundamental, o equivalente à Constituição brasileira, para incluir os neurodireitos. O Brasil, a passos lentos, também caminha em direção semelhante. O projeto de emenda constitucional 29/2023 desenvolvido pelo senador Randolfe Rodrigues (Sem Partido-AP) e pela procuradora do estado de São Paulo Camila Pintarelli tem o mesmo objetivo e, atualmente, aguarda designação de um relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado. “São avanços que, ao mesmo tempo em que trazem novos e bons rumos à gestão da saúde pública no mundo, acendem fundada e real preocupação a respeito dos limites éticos e normativos a serem observados pela neurotecnologia”, disse o senador em comunicado, após participar de um seminário para discutir o tema no mês de junho.
Yuste vê com bons olhos que os países desenvolvam individualmente suas próprias medidas sobre o tema, mas ele tem trabalhado com as Nações Unidas para garantir que isso seja feito de maneira mais ampla. Idealmente, para ele, os neurodireitos deveriam ser incluídos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas seria igualmente efetivo caso fossem discutidos em um dos tratados internacionais já existentes, como o pacto internacional sobre os direitos civis e políticos. “É a primeira vez que os humanos conseguem se autoconstruir, e precisamos garantir que isso seja feito de maneira justa, sem gerar mais separação entre as pessoas”, ele afirma.
O Fronteiras do Pensamento foi por apoiado pelo Hospital Moinhos de Vento, de Porto Alegre, cidade em que Yuste também palestrou durante sua passagem pelo país.
Um longo caminho
Apesar das neurotecnologias estarem caminhando a passos largos, ainda existem muitos desafios a serem superados. “Estamos há mais de 100 anos estudando o cérebro e, todavia, não temos uma teoria geral de como ele funciona”, diz Yuste. O grande desafio é a individualidade. Como já previa Immanuel Kant (1724-1804), ainda no século XIX, cada ser humano percebe o mundo de uma maneira particular. E é no cérebro que isso acontece. Os neurocientistas estimam que cerca de 70% das conexões sejam diferentes entre cada indivíduo porque cada um tem um modelo do mundo dentro da própria cabeça.
Por esse motivo, diferentemente de outros órgãos importantes como o coração, o fígado ou os rins, cujos funcionamentos são bem compreendidos, o cérebro ainda é um mistério. Não se sabe, por exemplo, como o disparo de um neurônio pode gerar um pensamento. “É a pergunta fundamental da neurociência”, diz o pesquisador.
É por isso que, em 2014, Barack Obama, então presidente dos Estados Unidos, criou a iniciativa Brain, um projeto para acelerar o avanço do conhecimento a respeito do cérebro. O plano cresceu e, agora, essa se tornou uma iniciativa internacional, da qual o laboratório de Yuste faz parte. Ainda estamos longe, mas, nesse ritmo, quem somos e o que podemos nos tornar são perguntas que logo serão resolvidas pela ciência – e a resposta promete surpreender.