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Comunidade científica denuncia invalidade da hipnose forense

Pesquisadores questionam validade da técnica na resolução de crimes

Por Rachel Herdy, para o Questão de Ciência*
10 out 2024, 08h00

“Uma ciência lixo me colocou no corredor da morte. Eu não deveria morrer”. Essas foram as palavras de Charles Don Flores, usadas para abrir uma reportagem publicada em agosto passado no New York Times. A reportagem conta a história de um homem condenado à pena de morte com base num reconhecimento feito por uma testemunha após ser hipnotizada. A execução de Flores pelo sistema penal do Texas está programada para o próximo dia 23 de outubro, embora, curiosamente, este mesmo estado tenha, recentemente, proibido o uso da hipnose em investigações policiais.

O crime ocorreu em 29 de janeiro de 1998. Elizabeth Black, uma idosa de 64 anos, foi assassinada a tiros em sua casa, junto com seu cachorro. A residência estava revirada, sugerindo que houve uma busca ou tentativa de roubo. Jill Barganier, vizinha de Black, foi a principal testemunha da acusação. Ela, inicialmente, afirmou ter visto dois homens altos, brancos, magros e de cabelos longos saindo da casa da vítima, em um carro modelo Fusca. O retrato falado em nada se parecia com o perfil de Flores – um hispânico com sobrepeso, de cabelos curtos e que usava óculos.

Rick Childs, cujas características físicas correspondiam à descrição de Barganier, foi por ela prontamente identificado no primeiro procedimento de reconhecimento fotográfico realizado na delegacia – ele depois confessou o crime, fez um acordo de negociação da pena e hoje está em liberdade. A pedido da própria testemunha, ela foi submetida a uma sessão de hipnose para tentar se lembrar do segundo homem.

“Você será capaz de se lembrar de mais detalhes desses eventos com o tempo”, disse o policial Alfredo Roen Serna, responsável por conduzir a sessão. E acrescentou, de forma indevidamente sugestiva: “Pode ser que você esteja em casa fazendo uma tarefa cotidiana e algo lhe venha à mente sobre aquele incidente ou qualquer outra coisa. É quase um fenômeno a forma como isso acontece, então não é incomum lembrar-se de algo depois, após a sessão”. Em 1996, Serna havia realizado um curso de 40h sobre hipnose forense no Centro de Justiça Criminal da Universidade de Houston – Downtown. De 1988 a 2020, pelo menos 874 agentes policiais do estado do Texas foram certificados em hipnose como técnica investigativa.

Depois da sessão de hipnose, Barganier fez um segundo retrato falado do criminoso, muito parecido com as descrições iniciais que havia dado. A polícia, em seguida, realizou um procedimento de reconhecimento fotográfico cujo conjunto incluía uma imagem de Flores – a quem a polícia chegou por ser parceiro de Childs, com quem traficava e usava drogas. Ainda assim, Barganier não foi capaz de reconhecer Flores. Como sugeriu o policial, a identificação realmente só ocorreria tempos depois.

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Com confiança, Barganier identificou Flores treze meses mais tarde, um homem que não correspondia às suas descrições iniciais. A identificação ocorreu enquanto ele estava sentado no banco dos réus, durante o julgamento. Nesse período, além de ter visto a foto de Flores no procedimento de reconhecimento na delegacia, ela foi repetidamente exposta à sua imagem em reportagens da mídia local. Segundo o Steven Lynn, especialista em hipnose convocado pela defesa, a confiança exagerada de Barganier ao identificar o réu mais de um ano após o crime foi resultado da hipnose e dos comentários sugestivos do policial que conduziu o procedimento.

Como curiosidade, Steven J. Lynn é coautor de um interessante livro intitulado 50 Great Myths of Popular Psychology: Shattering Widespread Misconceptions of Human Behavior (Wiley-Blackwell, 2010). O Mito nº 12 é intitulado “A hipnose é útil para recuperar memórias de eventos esquecidos”. Nele, Lynn escreve: “Para piorar, a hipnose pode gerar mais erros de recordação ou memórias falsas do que a recordação comum, além de aumentar a confiança das testemunhas tanto em memórias imprecisas quanto em precisas (esse aumento de confiança é chamado de ‘endurecimento da memória’)” (p. 72).

Suprema Corte

Flores contestou sua condenação em todas as instâncias possíveis. Em um de seus recursos, solicitou à Corte de Apelações Criminais do Texas um habeas corpus para obter um novo julgamento. O pedido se fundamentava no artigo 11.071, parágrafo (b), do Código de Procedimento Criminal do Texas, que autoriza a revisão de uma condenação quando surgem novas evidências científicas relevantes que não estavam acessíveis ou não podiam ser descobertas com diligência razoável antes ou durante o julgamento. A Corte rejeitou o pedido, argumentando que o conhecimento científico sobre a hipnose já estava disponível em 1999, na época do julgamento de Flores.

Em sua última tentativa de reverter o caso, Flores apresentou uma petição à Suprema Corte dos Estados Unidos argumentando que o uso da hipnose como técnica de recuperação e aperfeiçoamento da memória deveria ser considerada inconstitucional. Isso configurava uma violação do direito ao devido processo legal, garantido pela Décima Quarta Emenda. Seu argumento fundamentava-se em razões técnico-científicas, destacando um conjunto de pesquisas que corroboram os riscos associados ao uso da hipnose em processos criminais.

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A possibilidade de se utilizar a técnica da hipnose em vítimas e testemunhas para fins de investigação policial já havia sido objeto de consideração da Suprema Corte no caso Rock v. Arkansas (1987). Nesse precedente, a Corte analisou a constitucionalidade de uma lei do estado do Arkansas que limitava o direito de testemunhar após a pessoa ter passado por uma sessão de hipnose. Naquela ocasião, a maioria dos ministros considerou que a proibição total prejudicaria o direito à ampla defesa de um réu que quisesse usar essa técnica para recuperar sua memória e, assim, oferecer um depoimento mais preciso. Segundo a opinião da maioria, as cortes deveriam avaliar a admissibilidade desses testemunhos caso a caso, verificando se protocolos específicos foram seguidos para reduzir os riscos associados à hipnose.

Em Rock v. Arkansas, os ministros dissidentes manifestaram preocupação com o risco de condenações baseadas em pseudociência. O ministro William Rehnquist, em sua opinião divergente, afirmou: “Até que haja um consenso muito maior sobre o uso da hipnose do que existe atualmente, a Constituição não justifica que esta Corte imponha sua própria visão sobre como lidar com a questão”. A posição de Rehnquist defende que, diante de incertezas na comunidade científica, o Judiciário deve agir com cautela. Para evitar erros judiciais graves, como a condenação de inocentes, o sistema de justiça criminal deve manter um padrão rigoroso na admissão de provas cuja confiabilidade científica seja duvidosa.

Diante da oportunidade de reconsiderar o uso da hipnose forense no caso de Flores, a Suprema Corte optou por não agir. A Corte tem discricionariedade para selecionar os casos que irá avaliar, geralmente escolhendo aqueles com relevância nacional, que podem estabelecer precedentes significativos ou que oferecem a chance de harmonizar decisões conflitantes entre diferentes jurisdições estaduais. Para que um caso seja aceito, é necessário que quatro dos nove ministros concordem em analisá-lo.

É uma pena, pois os ministros receberam informações valiosas que poderiam ter levado a uma mudança de entendimento. Foram apresentados dois memoriais de amicus curiae: um pelo Innocence Project, que vinculava aspectos centrais do caso às evidências científicas disponíveis, e outro por Steven D. Penrod, pesquisador da Universidade da Cidade de Nova York, junto com outros 27 cientistas cognitivos. A seguir, um resumo dos principais argumentos apresentados por este segundo memorial:

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“I. Após anos de resultados e opiniões conflitantes, os cientistas agora estabeleceram que as memórias revividas por hipnose são pouco confiáveis, mesmo quando as supostas salvaguardas são aplicadas.

  1. A ciência da hipnose era incerta durante as décadas de 1980 e 1990, embora já houvesse indícios de problemas.
  2. Após o julgamento do peticionário em 1999, pesquisas em desenvolvimento mostraram que as memórias aprimoradas por hipnose são pouco confiáveis e que as salvaguardas não funcionam.

II. As memórias não se formam de maneira que permita uma recuperação confiável para uso em um contexto forense.

  1. Ao contrário de um vídeo fixo de eventos passados, a memória é maleável e se forma por meio de um processo reconstrutivo.
  2. A retenção e a recuperação da memória ocorrem em três etapas, cada uma oferecendo várias oportunidades para falhas ou distorções da memória.

III. Os mitos populares sobre a memória, a confiança excessiva de testemunhas e a natureza pouco confiável e praticamente impossível de testar das lembranças pós-hipnóticas deveriam impedir o uso da hipnose em contextos forenses, especialmente por parte das autoridades policiais.

  1. Expectativas equivocadas sobre a memória e a confiança da testemunha distorcem o impacto do testemunho pós-hipnose, que pode estar alterado ou ser falso.
  2. As expectativas podem causar distorções adicionais quando a hipnose envolve autoridades policiais.”

Flores não é um caso isolado

Em um caso semelhante ao de Flores, o canadense Robert Baltovich passou oito anos preso, acusado da morte de sua namorada, Elizabeth Bain. Bain desapareceu em 19 de junho de 1990, quando ambos ainda eram universitários. O corpo da vítima nunca foi encontrado, apenas o seu carro, com vestígios de sangue. Inicialmente, a testemunha Marianne Perz afirmou ter uma lembrança vaga do homem que viu com Bain no campus, no dia de seu desaparecimento. Depois de ler uma reportagem no jornal com a foto de Baltovich e conversar com familiares que acreditavam que ele poderia ser o culpado, ela passou por uma sessão de hipnose. Perz em seguida alterou seu depoimento e identificou Baltovich em um procedimento de reconhecimento fotográfico, levando à sua condenação.

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Quando os advogados do Innocence Canada assumiram sua defesa, conseguiram reverter a condenação na Corte de Apelações de Ontário. A Corte reconheceu várias falhas, especialmente em relação às instruções enviesadas dadas aos jurados, e ordenou a realização de um novo julgamento. A hipnose forense não foi um ponto problemático naquele momento. Baltovich, contudo, teve mais sorte que Flores. Antes de que pudesse ser julgado novamente, a Suprema Corte do Canadá decidiu, no caso R. v. Trochym (2007), que testemunhos obtidos após sessões de hipnose não seriam mais admissíveis nos tribunais do país. Nas palavras da então ministra Marie Deschamps:

“Embora a hipnose tenha sido objeto de numerosos estudos, esses estudos são inconclusivos ou destacam que, em determinadas circunstâncias, a hipnose pode resultar na distorção da memória. A taxa potencial de erro nas informações adicionais obtidas por meio da hipnose, quando utilizada para fins forenses, também é preocupante. Atualmente, não há como saber se essas informações serão precisas ou imprecisas. Essa incerteza é inaceitável em um tribunal”.

As condenações de Flores e Baltovich estão longe de representar casos isolados. No contexto da justiça criminal dos Estados Unidos, Edward Honaker e Lesly Jean cumpriram 9 anos de prisão; Larry Mayes e Leo Waters, 21 anos; e Glen Woodall, 5 anos. Todos foram condenados por crimes sexuais com base em reconhecimentos errôneos feitos por vítimas que haviam sido submetidas a sessões de hipnose. Em alguns desses casos, a hipnose foi conduzida pela polícia de forma sigilosa, sem que a defesa tenha sido informada. Com o avanço dos exames de DNA nos anos 1990 e o trabalho de organizações como o Innocence Project, todos foram posteriormente inocentados. Os testes realizados nas amostras de sêmen preservadas não coincidiam com o material genético dos condenados. Um dado impressionante nesta história: Mayes foi a centésima pessoa a ter sua condenação errônea revisada com a ajuda de exames de DNA!

A hipnose no sistema brasileiro

No Brasil, ainda não há decisões dos tribunais superiores sobre o uso da hipnose como técnica de recuperação de memória em investigações criminais. A única menção à hipnose forense nos sistemas de busca de jurisprudência remete a uma decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (Agravo de Instrumento 804.908, Santa Catarina), na qual se questiona a nulidade do uso do polígrafo e da hipnose que se pretendia realizar no plenário do tribunal do júri. O magistrado que presidia o júri havia negado o uso de tais recursos com base no direito à não autoincriminação. No julgamento, o ministro Gilmar Mendes não conheceu o recurso, aplicando a Súmula 279 do STF, que impede o tribunal de reavaliar questões probatórias.

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Por outro lado, há decisões em várias instâncias, além de doutrina no Direito Penal, que equiparam o estado hipnótico a outros métodos que diminuem a capacidade de resistência da vítima, como o uso de drogas ou soníferos, caracterizando a chamada “violência imprópria”, prevista no artigo 157 do Código Penal. É interessante notar que, nesses casos, o Direito considera o estado hipnótico uma forma de reduzir a autonomia de uma pessoa.

Apesar da ausência de tratamento da hipnose forense na jurisprudência brasileira, há notícias sobre o uso da técnica em investigações criminais pelas polícias civis de São Paulo e Paraná. Este último estado se destaca pela criação de um Laboratório de Hipnose Forense da Polícia Científica. O laboratório foi fundado em 1998 pelo falecido médico, psicólogo e perito Rui Fernando Cruz Sampaio, tendo funcionado por dez anos. Nesse período, foram conduzidas mais de 800 sessões. Entre 2011 e 2015, o laboratório foi reaberto, mas atualmente já não está mais em funcionamento.

Este texto não abordou o uso da hipnose como técnica terapêutica na área da saúde, mas se concentrou em sua aplicação no contexto forense. Em investigações e julgamentos criminais, os riscos da hipnose, como a indução de falsas memórias e a confiança excessiva que ela pode gerar em vítimas ou testemunhas, podem influenciar a avaliação de juízes e jurados sobre a veracidade dos depoimentos. Por essas razões, o uso da hipnose em contextos forenses não é aceito pela comunidade científica. Seus perigos são evidenciados em diversos casos de condenações errôneas que envolveram o uso dessa técnica.

*Rachel Herdy é professora associada da Universidad Adolfo Ibáñez, Chile

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