Como os destroços de navio naufragado em 1682 foram encontrados
O desastre do Gloucester matou centenas de pessoas. Agora, com a ajuda da tecnologia, seus tesouros foram achados
Em 1682, o Gloucester havia completado 22 anos na frota inglesa. A fragata, naquele início de maio, servia à família real e percorria a costa de Norfolk, a caminho de Edimburgo, na Escócia. Embora estivesse equipado com cinquenta canhões, sua missão era frugal: buscar Mary, a duquesa de York, para levá-la até Londres. Na comitiva de 330 pessoas, o marido dela, James Stuart, duque de York, comandava uma senhora festa, com direito a muita bebida, pratos elaborados e até música. Irmão do rei Carlos II e herdeiro do trono inglês, ele usou de sua autoridade como ex-marinheiro de alta patente para decidir uma disputa entre os vários comandantes da frota que discutiam se deveriam continuar na mesma rota ou se afastar do litoral. Ao manter o rumo e a velocidade, no dia 6, a embarcação de 755 toneladas bateu em um banco de areia e afundou em 45 minutos, matando entre 130 e 250 pessoas.
Durante anos, os destroços do Gloucester repousaram no fundo do mar sem serem perturbados. Na superfície, o enredo escandaloso ajudou a esquecer o que havia ficado debaixo da água. Entre os sobreviventes da tragédia, o futuro rei James II driblou sua responsabilidade ao acusar o capitão da fragata de negligência e pedir o seu enforcamento — o marinheiro foi condenado à prisão perpétua e, um ano depois, abandonou a pena, saindo pela porta dos fundos. Foi graças ao empenho e à obstinação de Lincoln e Julian Barnwell, dois irmãos ingleses caçadores de naufrágios, que o navio e seu carregamento foram encontrados. De uma família de gráficos, eles começaram as buscas em 2003, inicialmente por curiosidade e espírito de aventura. Mas não pararam mais até encontrarem os primeiros vestígios da nave, canhões e ripas de madeira.
A confirmação de que se tratava de despojos do Gloucester veio apenas mais tarde, com o resgate de um sino — fundamental para a identificação da embarcação — e de outros artefatos, como roupas e sapatos, equipamentos de navegação e equipamentos navais profissionais, pertences pessoais e muitas garrafas de vinho. Uma delas, fechada, traz um selo com o brasão da família Legge, de ancestrais de George Washington, o primeiro presidente dos Estados Unidos. O achado demorou para ser revelado porque era necessário checar a identidade do navio e proteger o local histórico, próximo de Great Yarmouth, na costa leste inglesa. “A descoberta promete mudar a compreensão da história social, marítima e política do século XVII”, diz a professora Claire Jowitt, da Universidade de East Anglia.
Outras revelações recentes só foram possíveis graças à tecnologia. Pouco tempo atrás, cientistas da agência ambiental inglesa encontraram uma embarcação do século XIX graças ao uso de veículos subaquáticos capazes de gravar imagens em altíssima definição. Depois, arqueólogos gregos usaram inteligência artificial para processar imagens de um sítio submarino e descobrir um navio romano de 2 000 anos chamado Fiskardo. O caso mais extraordinário é o Endurance, encontrado em março passado nos mares congelados da Antártica após passar 106 anos no fundo do oceano. Sua exata localização só foi revelada com a ajuda de drones e sensores. O veleiro levou o explorador Ernest Shackleton e uma tripulação de 27 homens ao Polo Sul antes de afundar no Mar de Weddel, em 1915.
Estimativas da Unesco apontam que há 3 milhões de naufrágios no fundo do mar. Mesmo com tecnologias avançadas, é preciso reconhecer que as profundezas oceânicas são ambientes traiçoeiros. Além do alto custo dos equipamentos de prospecção, há aspectos logísticos, como o transporte, e ambientais, como a instabilidade climática, para contornar. Ainda assim, o movimento de busca por tesouros marítimos deverá continuar. “A tecnologia impulsiona a produção do conhecimento arqueológico de forma significativa”, diz a arqueóloga marinha Cristiane Amarante. Ou seja: muito em breve, novos Gloucesters e Endurances serão encontrados.
Publicado em VEJA de 6 de julho de 2022, edição nº 2796