Cientistas narram rotina de insultos e até ameaças de morte na pandemia
Pesquisadores conhecidos foram agredidos impiedosamente pelos negacionistas. VEJA foi ouvir alguns deles, que relataram em detalhes casos de intimidações
Faz parte dos meandros da mente humana atribuir explicações imaginárias ao que não entende e defendê-las com unhas e dentes contra quem tenta revisar os fatos à luz do pensamento racional. A internet, sempre ela, aprofundou tremendamente a divisão entre crença e ciência ao unir, dar voz e emplacar uma aura de credibilidade a propagadores de teorias conspiratórias e negacionistas de fatos cientificamente comprovados. Neste mundo rachado em dois, em que um lado cisma em desacreditar as instituições, veio uma pandemia que, em meio a milhões de mortos, mais de 600 000 no Brasil, se tornou arma ideológica — e usar máscara e tomar vacina viraram atos políticos. Sobrou para os cientistas sérios. Sobre eles recaem ameaças de morte, ataques de todo tipo, insultos e, no mais recente acesso de obscurantismo do governo brasileiro, a grosseria de conceder e revogar uma honraria.
A ordem partiu de cima. Ao tomar conhecimento da lista de 41 pesquisadores agraciados pelo Ministério da Ciência e Tecnologia com a medalha de Honra ao Mérito Científico e deparar com o nome de duas pessoas em posições contrárias à sua visão torta e negacionista da realidade, o presidente Jair Bolsonaro assinou o decreto publicado no Diário Oficial removendo da homenagem a dupla. Foram expelidos o virologista Marcus Lacerda, um dos primeiros a apontar a ineficácia da cloroquina (remédio de cabeceira no Palácio do Alvorada) no tratamento da Covid-19, e a sanitarista Adele Benzaken, autoridade em prevenção da aids, por desenvolver uma cartilha destinada a homens trans — motivo também de sua prévia exoneração do Ministério da Saúde. Em protesto contra a descortesia, 21 dos cientistas selecionados abriram mão da honraria. “Nunca houve um momento tão crítico para a ciência brasileira”, diz Cesar Victora, epidemiologista que recusou a Ordem de Grão Cruz, uma das mais altas condecorações concedidas por Brasília.
Aos atos de agressiva deselegância oficial soma-se uma feroz caça às bruxas desencadeada nas redes sociais, mirando sobretudo pesquisadores que foram a público rebater as fake news com informações comprovadas e seguras. Uma edição recente da prestigiada revista Nature chamou a atenção para perseguição generalizada, ao divulgar uma pesquisa com profissionais que aturaram na linha de frente do combate à Covid-19 em sete países. Dos 321 entrevistados, 15% disseram ter recebido ameaças de morte; 22% relataram insinuações de violência física e sexual; e 40% foram alvo de comentários ofensivos. “A pandemia deixou as pessoas com medo e com raiva”, diz Bianca Nogrady, autora da pesquisa. “Elas buscam soluções simples para uma situação complexa e, quando querem achar alguém a quem culpar, voltam-se para quem atua na área científica.”
Mas como se sentiram os atingidos por essa volta às trevas em pleno século XXI? VEJA conversou com dez cientistas que foram vítimas de intimidação e constrangimento. Os relatos são assustadores. O biólogo Lucas Ferrante, de 33 anos, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), conta que passou a ser perseguido logo no início, em abril de 2020, depois de assinar um artigo sobre a ineficácia da hidroxicloroquina na revista Science, uma das mais respeitadas publicações científicas do mundo. As primeiras intimidações chegaram pelo Twitter e pelo telefone, vindas de pessoas que nem sequer haviam lido o texto. Sete meses depois, os agressores passaram da ameaça ao ato. Ferrante chamou um carro por aplicativo, embarcou sem verificar a placa em um veículo que parou à sua frente e percebeu que ele não seguia a rota prevista. O motorista se virou e lhe passou um claro aviso: “Cale a boca”. Ele conseguiu fugir, mas teve o braço ferido na confusão. Em janeiro, sofreu nova agressão, de consequências muito mais nefastas. Ferrante diz que começou a sentir um gosto estranho na água de casa, foi averiguar e encontrou pedaços de pilhas no encanamento. Meses depois, foi detectado um câncer na tireoide raríssimo em pessoas do sexo masculino, ainda mais na idade dele. “Os médicos suspeitam que esteja relacionado à minha exposição a substâncias tóxicas”, explica o biólogo, hoje em tratamento.
Os funcionários da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, responsável pela liberação de vacinas no Brasil, estão na lista preferencial de vítimas da pequena, mas barulhenta e perversa parcela da população que insiste em desacreditar os imunizantes. O nível de tensão aumentou nas últimas semanas, diante das tratativas para a liberação da vacina da Pfizer (uma das mais demonizadas pela turma do contra, que vê no seu componente genético uma conspiração malévola contra as pessoas de bem) para crianças de 5 a 11 anos, o que deve acontecer em breve. Pelo menos duas mensagens enviadas para o e-mail de atendimento ao público da Anvisa ameaçam os diretores da agência. “Descobriremos onde moram, se têm filhos e quem são seus amigos e familiares. A resposta será fogo e fúria”, vocifera um dos textos. “Além de estarmos naturalmente desgastados por causa da rotina na pandemia, ainda temos de conviver com o temor de sermos violentados. É um absurdo”, desabafa o presidente do órgão, Antonio Barra Torres. O presidente Jair Bolsonaro nada disse.
Parece tão óbvio: graças ao empenho dos cientistas, as vacinas contra a Covid-19 foram desenvolvidas em tempo recorde, e graças a elas o contágio e as mortes caíram vertiginosamente. No entanto, pessoas de todos os extratos, inclusive em posição de poder, seguem não só fechando os olhos ao óbvio, como atacando quem o defende. O britânico Chris Whitty, médico conselheiro do governo de Boris Johnson e mais alta autoridade sanitária do Reino Unido, chegou a ser agarrado e empurrado enquanto filmava, incrédulo, uma passeata antivacina nas ruas de Londres. Na Alemanha, Christian Drosten, biólogo especialista em novas cepas de vírus, recebeu de um serviço de entrega um frasco com um líquido desconhecido, a palavra “positivo” escrita na etiqueta e um bilhete para beber a substância. A rotina de quem sofre esse tipo de pressão pode se tornar angustiante. “Em restaurantes, só me sento virado para a parede para não ser reconhecido. E penso duas vezes antes de fazer qualquer atividade com meu filho”, relata Pedro Hallal, coordenador do maior estudo epidemiológico de Covid-19 no Brasil, que o levou a participações frequentes em programas de TV. Depois de receber intimidações de toda forma, ele se mudou com a família para os Estados Unidos, mas ainda guarda hábitos de proteção e receios arraigados. “Vira uma paranoia. Outro dia meu cachorro sumiu por alguns instantes e eu fiquei desesperado, achando que alguém tinha feito alguma maldade com ele”, diz.
O tom das ofensas se torna mais agressivo quando os alvos são mulheres, negros, estrangeiros e minorias em geral. “A voz da idade das trevas continua soando nos Estados Unidos”, diz Amesh Adalja, descendente de indianos que se especializou em doenças infecciosas, se tornou pesquisador sênior do renomado Centro Johns Hopkins e recebe constantemente mensagens de ódio com apelidos e expressões pejorativas. A diretora do Serviço de Saúde Pública do Canadá, Theresa Tam, conta que as muitas agressões à sua pessoa sempre mencionam haver nascido em Hong Kong. “Na ciência, é fundamental ouvir opiniões divergentes. Mas não há espaço para manifestações de racismo, misoginia e outras formas de discriminação”, pondera ela. Professora da Unip, em São Paulo, a biomédica Letícia Sarturi, 33 anos, que fez mestrado em imunologia e doutorado em fisiopatologia, observa alto grau de machismo misturado às ofensas que recebe por rebater inverdades e ignorância em relação à pandemia. “Já me chamaram de burra e de arrogante”, conta.
O método científico tal qual conhecemos hoje começou a ser moldado no início do século XVII, na esteira do Renascimento. Embora alguns célebres pensadores da Antiguidade já se preocupassem em embasar suas teorias em fatos, foi nessa época que filósofos como Francis Bacon (1561-1626), René Descartes (1596-1650) e Isaac Newton (1643-1727) mudaram o conceito de ciência ao propor que a busca da verdade deveria partir da observação e da experimentação, e não do raciocínio intuitivo. Os primeiros cientistas a abraçar essa abordagem revolucionária pagaram caro por seu corajoso pioneirismo. Galileu Galilei (1564-1642) foi condenado à prisão domiciliar pela Inquisição Romana ao defender que a Terra girava ao redor do Sol, e não o contrário. Com o monge dominicano Giordano Bruno (1548-1600), a Igreja Católica foi mais inclemente. Por afirmar que estrelas distantes eram sóis em torno dos quais giravam diferentes planetas e que neles podia existir vida, entrando em confronto com os dogmas religiosos, Bruno foi condenado à morte e lançado vivo em uma fogueira. Em ambos os casos, os debates que antecederam as sentenças envolveram a elite intelectual do clero, figuras de vasto conhecimento e sabedoria. “O negacionismo não é fruto da baixa escolaridade, mas de uma manipulação ideológica que procura dar o mesmo peso à ciência e à ignorância”, explica Nélio Bizzo, professor de educação da USP.
Nos tempos modernos, o negacionismo se sofisticou como ferramenta de contestação. Ficou famosa a estratégia da indústria tabagista de, durante décadas, contratar cientistas a peso de ouro para lançar dúvidas sobre os estudos que comprovavam por A mais B que fumar causa câncer e doenças cardíacas. “O mesmo artifício é usado atualmente para negar a destruição da camada de ozônio e o aquecimento global, sem falar na velha e resistente rejeição ao fato de que a Terra é esférica”, diz José Luiz Goldfarb, professor de história da ciência da PUC-SP. Efeito colateral da pandemia, percebe-se agora que, munidos de suas convicções sem fundamentos, os propagadores de absurdos — perigosos absurdos — viraram mestres em atormentar e intimidar os profissionais da ciência, tentando impedir que se manifestem. Pior: com o incentivo e gestos solidários de poderosos de plantão. “É lamentável ver cientistas forçados a sair do debate público em um momento em que tanto precisamos deles”, critica Fiona Fox, chefe do UK Science Media Centre. Resta torcer para que, em um novo mundo vacinado e preparado para se proteger, o obscurantismo perca adeptos, volte para sua toca e de lá não saia.
NA MIRA
Cientistas ouvidos por VEJA relatam sua rotina de agressões físicas e psicológicas
“Precisei abandonar as redes porque não parava de receber ameaças de morte de perfis anônimos. Um dia, um homem partiu para cima de mim e fugi, apavorado. Hoje evito sair de casa.”
Lucas Ferrante, biólogo do Inpa na Amazônia
“As pessoas não entendem o método científico e atiram no que não compreendem. A impressão é que o ser humano optou por voltar no tempo e colocar suas crenças acima do conhecimento.”
Letícia Sarturi, biomédica da Unip
“Minha mulher já foi seguida na rua. Me sentia tão intimidado no Brasil que resolvi antecipar uma ida para os Estados Unidos, onde sou professor visitante, sem data para voltar .”
Pedro Hallal, epidemiologista da Federal de Pelotas
“Me acusam pelas redes de receber dinheiro de empresas, de divulgar informações falsas, e já ouvi até ameaças de ataques físicos. Isso só porque exponho o conhecimento científico.”
Julio Ponce, epidemiologista da USP
“A pandemia atraiu o olhar das pessoas para a ciência e elas muitas vezes se manifestam de forma desagradável, dando voz a um discurso de ódio.”
Theresa Tam, diretora de Saúde Pública do Canadá
“Recebi mensagens assustadoras dizendo que era fácil descobrir onde eu moro e sugerindo que tomasse cuidado com o que falo. Tenho medo, mas nunca vou deixar de fazer o que julgo correto.”
Mellanie Dutra, neurocientista da UFRGS
“Além de todo o peso da pandemia, ainda sofremos com o pavor de sermos agredidos a qualquer momento. Quem fere a ciência é movido por desinformação e ignorância.”
Antonio Barra Torres, presidente da Anvisa
“Divulgam muitas fake news sobre mim, principalmente quando reafirmo a ineficácia do tratamento precoce. Tento ignorar, mas é impossível escapar da perseguição”.
Gideon Meyerowitz-Katz, epidemiologista da Universidade de Wollongong, na Austrália
Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2021, edição nº 2764