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Autora de ‘Nação Dopamina’, psiquiatra critica descriminalização de drogas

Em entrevista a VEJA, Anna Lembke falou sobre risco de importação da crise dos opioides, responsabilização de plataformas digitais e riscos das drogas

Por Luiz Paulo Souza Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 24 Maio 2024, 15h30 - Publicado em 24 Maio 2024, 15h16

Nos Estados Unidos, Nação Tarja Preta (Vestígio) foi o primeiro best-seller da psiquiatra americana Anna Lembke. Lançado no Brasil em 2023, ele fala sobre os mecanismos que levaram à crise dos opioides, que hoje assola o país. Já em Nação Dopamina (Vestígio), ela apresenta um novo risco: a da exposição constante ao prazer que, paradoxalmente, tem levado a uma crise de saúde mental em todo o mundo.

Os lançamentos levaram a interpretações e soluções “picaretas” em virais da internet, mas os assuntos são sérios, e em entrevista a VEJA, a autora falou sobre eles. Ao longo do papo, que dá o tom da apresentação que fará no Brasil, pelo ciclo atual do Fronteiras do Pensamento, ela discorre sobre como evitar o problema dos opioides por aqui, o perigo das redes sociais e as possíveis consequências da descriminalização das drogas.

No livro Nação Tarja Preta você fala sobre os mecanismos por trás da crise dos opioides nos EUA. Esse pode se tornar um problema em outros países também? Acho que o risco para outros países é real por uma série de razões. A indústria farmacêutica está exportando sua campanha de marketing enganosa e ela consiste em exagerar os benefícios e minimizar os riscos dos opioides prescritos para dor. Realmente espero que o Brasil e outros países olhem para os Estados Unidos como um exemplo do que não fazer quando se trata de opioides.

O que o Brasil deve fazer para evitar repetir os erros dos americanos? A primeira coisa que o Brasil deve fazer é ser muito cauteloso ao permitir que a indústria farmacêutica influencie decisões médicas. Nos Estados Unidos, a forma como as grandes empresas farmacêuticas fizeram isso foi dando dinheiro para escolas de medicina, apoiando programas de educação médica, infiltrando a literatura médica, financiando estudos favoráveis aos seus medicamentos. 

Isso é suficiente? Também é importante garantir que os investimentos no sistema médico estejam alinhados com a manutenção da saúde das pessoas. Os Estados Unidos gastam mais em dólares com saúde do que qualquer outro lugar do mundo e ainda assim, nossas medidas de saúde estão piorando cada vez mais. Então, isso será uma peça realmente importante.

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CRISE DOS OPIOIDES – Anna Lembke: autora destrincha mecanismos do fenomeno (Ed. Vestígio/Divulgação)
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No best-seller Nação Dopamina, você discute o problema das dependências na saúde. Desde a publicação do livro, a discussão em torno desse tema melhorou? Este é realmente um problema enorme. Acho que a dependência é a praga moderna. Não é algo que vamos resolver em uma década, talvez nem mesmo em um século. Nos “drogamos” quase todas as formas de experiência humana. 

Como assim? Não falo de dependência apenas em substâncias, mas também em comportamentos e, especialmente, em tecnologia. Esse será o principal problema do nosso tempo. Eventualmente vamos resolver isso porque os humanos são bons nisso, mas vai levar muito tempo e muito sofrimento antes de conseguirmos.

Quão grande é o problema de estarmos constantemente conectados? É inerentemente humano e saudável querer se conectar com outras pessoas. Somos criaturas sociais, programadas para isso. O que as redes sociais fizeram foi explorar a conexão humana até seus elementos mais viciantes. Agora, o que temos é a ilusão de conexão quando, na verdade, o que estamos fazendo é consumindo uma droga. Vemos um aumento enorme em depressão, ansiedade e tendências suicidas entre os jovens e isso está diretamente correlacionado com o quanto tempo estão passando online. 

Então realmente há realmente uma conexão entre essa conexão constante e saúde mental? Sim. Se olharmos temporalmente, dá para ver que o aumento dos problemas de saúde mental seguiu o surgimento da internet e dos dispositivos portáteis. Existe uma forte correlação entre a quantidade de tempo online e os problemas de saúde mental. É um indicador forte de causalidade. 

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EXCESSO DE PRAZER – Nação Dopamina: Anna Lembke fala sobre os riscos da indulgencia constante (Ed. Vestígio/Divulgação)

É possível falar em vício? A internet, as redes sociais e as mídias digitais ativam o mesmo caminho de recompensa que as drogas. Com o tempo, as pessoas precisam de mais e mais e, mesmo quando percebem, não conseguem parar.

As plataformas de mídia social devem ser responsabilizadas por esse problema? As plataformas têm culpa e devem ser responsabilizadas pelos danos causados. Elas têm a absoluta obrigação de criar produtos mais seguros, especialmente para crianças e adolescentes. Precisam alertar as pessoas de que seus produtos são viciantes, assim como os cigarros, que tem advertências nas embalagens e não podem ser comprados por crianças. Essa é uma analogia apropriada.

Que outras medidas devem ser tomadas? Devemos começar focando nas crianças e adolescentes, que são as populações mais vulneráveis. Isso inclui parar de rastrear crianças, não usar seus dados, evitar algoritmos que entreguem conteúdo difícil de recusar e impedir notificações nos períodos da noite ou em horário escolar, por exemplo. É preciso garantir que os pais tenham a capacidade de controlar o que os filhos acessam sem que seja necessário ser um expert em computação. Agora, é preciso enfatizar que é uma responsabilidade compartilhada. Hoje, apenas os pais e professores carregam esse fardo, mas o governo e as corporações que lucram também precisam ser responsabilizados, isso precisar ser ampliado. 

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Existe alguma filosofia, hoje, que possa ajudar nesse processo? Sim, é uma ótima pergunta. Se você olha para textos filosóficos ou teológicos antigos, é possível encontrar muita sabedoria que a neurociência agora confirma ou corrobora, seja olhando para o Epicurismo, para algumas obras de Platão ou dos Estoicos, ou para qualquer religião importante, como Islamismo, Cristianismo e Judaísmo. Todas elas falam sobre períodos de jejum, o uso de intoxicantes com moderação, a importância da honestidade. Buda mesmo fala sobre o caminho do meio. Há muita sabedoria que nós conhecemos, mas esquecemos.

Quase como se fosse um conhecimento que, de alguma maneira, já está dentro de nós? Sim, exatamente. Dá até uma esperança, né? Quero dizer, não precisamos encontrar um grande segredo. Na verdade, já conhecemos a receita. Só precisamos estar abertos às coisas que já sabemos.

Ultimamente, vemos uma mudança na maneira como encaramos algumas drogas, que agora ganham caráter terapêutico. Como você vê isso? Em geral, acredito que é importante conhecer as evidências. Por exemplo, a maioria das pessoas que usam cannabis para tratar algum tipo de condição de saúde estão usando-a para dor ou para uma condição de saúde mental. Até o momento, as evidências são muito fracas para demonstrar que ela seja eficaz em qualquer condição de saúde mental. É importante ter isso em mente. As evidências realmente não apoiam uma narrativa de amplo uso medicinal, especialmente quando fumada ou usada em formas altamente potentes. Quanto aos psicodélicos, sempre é bom buscar novos remédios. Estamos no meio de uma séria crise de saúde mental e os medicamentos são uma ferramenta importante em nosso arsenal. Até o momento, contudo, as evidências em apoio aos psicodélicos para tratar transtornos de saúde mental não são robustas. Eles são um complemento à psicoterapia. O que aconteceu é que essa informação se espalhou para o público leigo, de modo que agora algumas pessoas estão microdosando psicodélicos totalmente por conta própria. Isso é charlatanismo.

E o que você acha da descriminalização dessas drogas nesse momento? Acho que isso é uma ideia muito ruim. Se você olhar para o estado do Oregon vai ver que o experimento deles na descriminalização das drogas levou a um enorme aumento nas mortes por overdose. Foi um desastre tão grande que eles estão revertendo essas políticas.

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Aqui no Brasil alguns grupos defendem que a guerra contra as drogas foi historicamente mais prejudicial do que o próprio uso de drogas, especialmente para grupos minoritários…Acredito que o sistema criminal tem um papel importante, valioso e positivo a desempenhar no combate à dependência e ao uso de drogas. Uma das sequelas da dependência é que as pessoas se envolvem em atividades ilegais. Obviamente, não queremos um sistema de justiça que seja sistemicamente racista, mas seria tolice jogar fora o bebê junto com a água do banho. Precisamos reconhecer o papel importante desse sistema e modificar nossas intervenções para que elas realmente ajudem as pessoas a melhorar. Então, acho lamentável que, você sabe, esse tipo de clichê de que a guerra às drogas foi ruim tenha levado as pessoas a concluir falsamente que o sistema de justiça criminal não tem nenhum papel positivo a desempenhar. É uma questão de equilíbrio. Se não tivéssemos restrições e tudo fosse legal, seria um completo desastre, o colapso da civilização.

Recentemente você falou sobre a ideia de honestidade radical. Como ela pode ajudar nos vícios? Isso deriva do meu trabalho com pessoas com vício grave ao longo de muitas décadas. O que tenho visto é que pessoas que se recuperam de vícios graves, não importa como entraram em recuperação, quase sempre se comprometem a não mentir. E não é apenas mentir sobre o uso de drogas ou seus comportamentos aditivos, mas o que comeram no café da manhã ou por que estão atrasadas, por exemplo. Acho que funciona em muitos níveis diferentes, porque ajuda a gerenciar o consumo excessivo e promove intimidade com as pessoas, o que é uma fonte boa e saudável de dopamina.

Então a honestidade radical é um jeito de encontrar equilíbrio? Sim. Eu gosto dela porque é uma ferramenta muito tangível e prática que qualquer um de pode adotar, mas é difícil porque a maioria de nós conta uma ou duas mentiras por dia. 

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