Asteroide que extinguiu os dinossauros levou à invenção da ‘agricultura das formigas’
Há 66 milhões de anos, após impacto, insetos selecionaram espécies de fungos que supriram sua carência de nutrientes, confirma estudo publicado na 'Science'
O evento que extinguiu os dinossauros não foi ruim para todos. O ambiente com pouca luz ocasionado pelo impacto do meteoro há cerca de 66 milhões de anos favoreceu a expansão de fungos que se alimentam de matéria orgânica, então abundante, visto que plantas e animais morriam aos montes. Foi a oportunidade perfeita para o ancestral de um grupo de formigas passar a cultivar esses microrganismos, como confirma estudo publicado nesta quinta-feira, na revista Science.
“A origem das formigas cultivadoras de fungos era relativamente bem resolvida, mas faltava estabelecer uma linha do tempo mais precisa para esses microrganismos. O trabalho traz a datação com menor margem de erro até hoje para o surgimento dessas linhagens fúngicas, que até então eram tidas como mais recentes”, explica André Rodrigues, professor do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (IB-Unesp), em Rio Claro, e um dos autores do artigo.
O pesquisador coordena o projeto “Pesquisa colaborativa: Dimensions US-São Paulo: integrando filogenia, genética e ecologia química para desvendar a emaranhada simbiose multipartida das formigas cultivadoras de fungos”, apoiado pela Fapesp no âmbito do Programa Biota, em colaboração com a National Science Foundation (NSF), dos Estados Unidos.
A datação foi possível por meio da análise dos chamados elementos ultraconservados (UCE, na sigla em inglês) do genoma de 475 espécies de fungos cultivados por formigas, coletadas em diferentes partes das Américas. Os UCE são regiões que permanecem no genoma ao longo da evolução de um grupo, originárias de seus ancestrais mais antigos.
“Nesse caso, nos interessavam as regiões próximas desses elementos. Elas mostram as diferenças mais recentes entre as espécies e nos permitem traçar uma linha evolutiva bastante acurada”, acrescenta Pepijn Wilhelmus Kooij, pesquisador no IB-Unesp apoiado pela Fapesp e também coautor do trabalho.
Por meio do método, foi possível estabelecer em 66 milhões de anos o surgimento, quase que simultâneo, do cultivo de duas linhagens distintas de fungos por um mesmo ancestral das formigas-cortadeiras atuais (grupo conhecido como Attini). Os especialistas no mutualismo entre fungos e formigas há tempos defendem que o início dessa relação determina a criação da agricultura, dezenas de milhões de anos antes de os seres humanos começarem a domesticar plantas, meros 12 mil anos atrás.
O estudo possibilitou, ainda, determinar em 48 milhões de anos o surgimento de um ancestral considerado um fungo-coral, um segundo grupo que passou a ser cultivado 21 milhões de anos atrás pelas formigas. O fungo leva esse nome por formar estruturas parecidas com miniaturas de colônias de corais marinhos.
Mutualismo
Os resultados reforçam a hipótese de que os fungos já tinham passado por uma pré-adaptação antes de começarem a ser cultivados pelas formigas. Provavelmente, apontam os autores, o ancestral do grupo das formigas-cortadeiras vivia próximo a fungos, fosse no interior das colônias ou mesmo coletando-os eventualmente para se alimentar deles ou de seus produtos.
“Mas os fungos não eram parte essencial da nutrição das formigas. A pressão exercida pelo impacto do meteoro possivelmente fez com que essa relação se tornasse um mutualismo obrigatório, em que esses fungos passam a depender das formigas para se alimentar e se reproduzir, ao mesmo tempo em que estas dependem exclusivamente dos fungos como fonte de alimento”, contextualiza Rodrigues.
Hoje, quatro grupos distintos de formigas cultivam quatro tipos de fungo. Em alguns casos, os insetos até mesmo alteram o crescimento do produto cultivado para que este forneça determinados nutrientes.
“Quando os cultivamos em laboratório, os fungos tomam a forma esperada, de hifa. No entanto, dentro da colônia, um desses tipos de hifas fica inchado e forma estruturas parecidas com cachos de uva, ricas em açúcares. Não sabemos ainda como as formigas fazem isso”, conta Kooij.
Para Mauricio Bacci Junior, professor do IB-Unesp e coautor do trabalho, a origem do cultivo de fungos provavelmente aponta para uma adaptação diante de uma carência nutricional enfrentada pelas formigas naquele período. Com a abundância de fungos, que se espalhavam pelo que hoje são as Américas, e menos opções de fontes nutricionais, os que já tinham alguma relação eventual com as formigas acabaram se mostrando mais úteis se cultivados.
“Para se alimentar, o fungo decompõe a matéria orgânica levada pela formiga. Por sua vez, esta consome substâncias produzidas pelo fungo que ela não poderia obter de outra fonte. É como se o fungo fosse um estômago externo do inseto”, compara o pesquisador, que é vice-diretor do Centro de Pesquisa em Biodiversidade e Mudanças do Clima (CBioClima), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) apoiados pela FAPESP.
Posteriormente àquele evento fundador, as formigas cultivadoras de fungo, que até então viviam em florestas úmidas, sofreram uma segunda pressão seletiva com a expansão do Cerrado, 27 milhões de anos atrás. Com mais áreas abertas e secas, houve uma diversificação desses insetos agricultores, levando à origem das formigas-cortadeiras atuais.
Esse evento certamente também favoreceu a diversificação dos fungos, que foram se tornando mais eficientes na produção de alimento para as formigas e na degradação da matéria orgânica. Tanto que, hoje, as enzimas produzidas pelos fungos cultivados por formigas são estudadas pelo potencial biotecnológico para degradar não apenas matéria orgânica, mas também outros materiais, entre eles o plástico.