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As descobertas surpreendentes sobre o modo de vida de povos pré-históricos

Escavações revelam que, afinal, os Flintstones dos desenhos não eram apenas fruto de uma fantasia ficcional

Por Luiz Paulo Souza Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h18 - Publicado em 12 ago 2023, 08h00

Quando os gênios da animação William Hanna e Joseph Barbera criaram Os Flintstones, no início dos anos 1960, eles imaginaram o sonho americano a passear em um cenário pré-histórico, em torno de duas famílias suburbanas, a que dava nome ao desenho e os Rubble. Havia um quê de ironia e crítica ao consumismo na lida de Fred e Wilma com os vizinhos Barney e Betty. Víamos as simpáticas e broncas figuras como se enxergássemos cidadãos contemporâneos. A brincadeira com o passado fazia rir e pensar. Surpresa: estudos recentes sobre o período que se estendeu do nascimento dos primeiros hominídeos, há 3 milhões de anos, até a criação da escrita, por volta de 3500 a.C., mostram que a organização comunitária dos primeiros homens e mulheres tinha traços que se assemelham, em parte, aos agrupamentos modernos. As descobertas — iabadabadu! — foram possíveis pelo estudo genético de restos encontrados na França.

A região da Bacia de Paris, no norte francês, é conhecida por seus monumentos funerários antigos, que teriam sido construídos para uma “elite” ancestral — os menires são um indicativo dessa característica. Escavações no sítio de Gurgy Les Noisats, um imenso cemitério arqueológico, plano e sem lápides, trouxeram à vida duas grandes árvores genealógicas. Elas autorizaram uma equipe franco-­alemã a iluminar a organização social da comunidade de 6 700 anos.

ELITE - Túmulos pré-históricos com menires à guisa de lápide: cidadãos nobres
ELITE - Túmulos pré-históricos com menires à guisa de lápide: cidadãos nobres (500px Plus/Getty Images)

Durante os trabalhos, o grupo conseguiu recuperar o DNA de 94 pessoas, sendo 64 delas membros de uma mesma família, um total de sete gerações acumuladas em um mesmo local, extraordinário terreno de investigação. “Quando começamos a análise genética desses indivíduos, a primeira surpresa foi descobrir que eram relacionados”, disse a VEJA Wolfgang Haak, pesquisador do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva e principal autor de um artigo sobre o trabalho publicado na revista Nature. Com base em evidências, os cientistas descreveram um grupo de parentes próximos que praticava a monogamia. Ao estudar os vestígios dos filhos, os cientistas perceberam não haver registro de meios-irmãos. Logo, os casais permaneciam juntos por toda a vida ou os bastardos eram enterrados em outro local. Contudo, pareciam lidar com a exogamia feminina — ou seja, os homens eram descendentes de uma mesma linhagem, mas as mulheres vinham de famílias diferentes. De acordo com os autores, a constatação sugere que o grupo se organizava de maneira patrilocal. Os representantes masculinos que ali nasciam, permaneciam, enquanto as mulheres criavam laços com outras comunidades.

Há uma outra faceta muito interessante: o grupo que chegou ao local inicialmente deixou tudo para trás, mas trouxe consigo os restos mortais de um único homem, que ocupou um local distinto no cemitério. Esse achado sugere se tratar de um ancestral de escol para a comunidade — o que os pesquisadores chamaram de pai fundador. Essa informação desafia teorias a respeito de comunidades neolíticas, segundo as quais os assentamentos eram majoritariamente matriarcais. Não por acaso, a figura de Vênus é comumente associada àquele período. “O trabalho chacoalha um pouco essas crenças”, diz a professora Ximena Suarez Villagran, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP.

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NA FRANÇA - Gurgy: a região tem sítios que datam do neolítico
NA FRANÇA – Gurgy: a região tem sítios que datam do neolítico (Daniel Villafruela/.)

O grupo não permaneceu por perto para sempre. Depois de sete gerações e quase 100 anos ocupando o local, eles partiram, não se sabe para onde. Por enquanto, é difícil dizer se esse era o comportamento de todas as comunidades que viveram naquele tempo. Não se sabe ainda. As descobertas descritas, contudo, podem fornecer a base para que novos estudos de paleontologia associada à genética ofereçam uma perspectiva mais abrangente sobre a organização social das sociedades neolíticas na Europa.

Ressalve-se, ainda, outro espanto. “Foi surpreendente perceber que muitos dos filhos chegaram à vida adulta”, diz Haak. A perplexidade é resultado de uma constatação: num período sem agricultura e sem medicina, é natural que a vida fosse mais curta. Esticá-la dependia de estoques, de boa alimentação, de apoio entre os indivíduos e da sorte de um período sem guerras. Parecia haver esse conjunto de condições no cotidiano dos Flintstones de carne e osso de seis milênios atrás — não tinham carro, é óbvio, nem mesmo para andar com os pés triscando o chão, não iam às compras e muito menos soltavam tolices nas redes sociais. Mas formavam os fundamentos da futura vida em sociedade.

Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2023, edição nº 2854

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