A sombra do invisível
Revelação da primeira foto de um buraco negro reafirma Teoria da Relatividade de Einstein e representa um extraordinário avanço nos estudos sobre o universo
A princípio, pode soar apenas como uma contradição, um paradoxo, um oximoro, enfim: ver o invisível. No entanto, não há melhor definição para o que permitiu enxergar a imagem divulgada mundo afora na quarta-feira 10 por astrônomos do projeto internacional Event Horizon Telescope (EHT, na sigla em inglês). Em um comunicado simultâneo feito em seis países, os cientistas exibiram a primeira fotografia de um buraco negro, nome dado a esses avassaladores abismos cósmicos capazes de sugar para o seu interior tudo, absolutamente tudo, até mesmo a luz. A foto, que logo viralizou, mostra a silhueta de uma sombra, abraçada por um anel irregular e resplandecente. O nome do buraco negro é M87 e suas dimensões são estupendamente exponenciais: ele é 6,5 bilhões de vezes maior que o Sol. O colosso está localizado a 55 milhões de anos-luz da Terra, bem no centro da gigantesca galáxia de Messier 87, na constelação de Virgem.
A ciência já havia provado a intensa força de gravidade exercida pelos buracos negros. Também já tinha captado o som das ondas gravitacionais que ecoavam o estrondo provocado pela colisão de duas daquelas monumentais estruturas cósmicas. A forma de um buraco negro, contudo, permanecia apenas no campo teórico. Isso porque, como os buracos negros não refletem luminosidade, eles são, a rigor, invisíveis. Eis a razão pela qual a fotografia foi recebida com espanto e aplausos. “Estou muito feliz em informar que pela primeira vez nós vimos o que pensávamos ser invisível”, comemorou Sheperd Doeleman, diretor responsável pelo EHT, durante a apresentação da imagem. “Isso é só o começo. A partir daqui as descobertas parecerão histórias de ficção científica”, disse a astrônoma americana Feryal Ozel, integrante do EHT.
O prodígio alcançado por Feryal, Doeleman e seus colegas começou a ganhar corpo em um experimento iniciado em 2017, que envolveu oito radiotelescópios, espalhados pela Espanha, Estados Unidos, Chile, México e Antártica. Os oito equipamentos captaram imagens de partes diferentes do buraco negro. Em seguida, tais imagens foram combinadas, por meio de uma técnica conhecida como interferometria, como se tivessem sido produzidas por um único telescópio gigantesco, com tamanho equivalente ao da circunferência da Terra. Ou seja: em vez de usar um telescópio de dimensões planetárias, o que não existe, os cientistas criaram um enorme telescópio virtual. Ao todo, foram captadas 65 horas de ondas de rádio vindas do buraco negro M87, que ocupariam 1 024 discos rígidos de 8 terabytes. Após dois anos de processamento desses dados, realizado por um software alimentado por mais de 200 cientistas, chegou-se à histórica foto ao lado — que, em termos técnicos, exibe as manifestações das ondas de rádio provenientes da atividade gravitacional do buraco negro e dos corpos astronômicos que ele atraiu.
O Event Horizon Telescope também observou outro buraco negro, situado no coração da Via Láctea: o Sagitário A* (diz-se “a-estrela”), com diâmetro estimado em 60 milhões de quilômetros e massa de 4 milhões de Sóis. Comparado ao M87, com os seus já citados 6,5 bilhões de Sóis e tamanho aproximado de 40 bilhões de quilômetros de diâmetro, o Sagitário A* é — em termos astronômicos — um buraco negro “pequeno”. Por causa disso, coletar suas ondas de rádio de modo a obter definição suficiente para a formatação de uma fotografia como a que foi feita do M87 é mais complicado. “Também temos resultados de Sagitário A*, porém são mais difíceis de processar. Estamos trabalhando neles e esperamos apresentá-los em breve”, declarou Sheperd Doeleman. Portanto, em algum momento também poderemos ver o buraco negro que habita o centro da Via Láctea.
Para compreender a magnitude da proeza — cujos resultados foram publicados na revista científica Astrophysical Journal Letters — realizada pelos astrônomos do EHT, é preciso deter-se um pouco na conformação de um buraco negro. A borda interna da parte alaranjada que é vista no retrato constitui a região conhecida como “horizonte de eventos”. É onde a matéria que acabará sendo engolida pelo buraco negro é acelerada a altíssimas velocidades pela força gravitacional do corpo celeste. No centro da imagem está o que os cientistas batizaram de “sombra de Einstein”. Ali fica também o “núcleo de singularidade”, impossível de ser visto por não emitir luz — é o buraco negro propriamente dito. Os físicos estimam que essa parte do corpo celeste tenha 40% das dimensões de sua sombra e seja tão densa que mesmo o tempo é distorcido — segundos de lá representam dezenas de anos aqui.
A ideia da existência dos buracos negros surgiu meses depois que o físico alemão Albert Einstein (1879-1955) formulou a Teoria da Relatividade Geral, em 1915. Sua teoria revolucionou a física ao concluir que a maneira com que a gravidade atua só poderia ser plenamente entendida no cruzamento de domínios distintos da natureza — massa, velocidade, área etc. —, com os corpos pesados deformando o espaço à sua volta e atraindo para seu centro as coisas ao redor, tal como uma esfera de aço colocada no meio de uma rede de pesca que acaba por curvá-la. Em resumo: os buracos negros surgiram como consequência inevitável da teoria de Einstein. Com base nas equações matemáticas trabalhadas na Teoria da Relatividade Geral, o também físico alemão Karl Schwarzschild (1873-1916) calculou pela primeira vez o que aconteceria se fosse possível comprimir a massa de uma estrela em um único ponto. Schwarzschild chegou à conclusão de que, em uma situação assim, a gravidade seria tão intensa que nada, absolutamente nada, poderia escapar de sua atração. Dessa armadilha não se livrariam sequer as chamadas ondas-partículas de luz — foi uma pioneira conceituação do buraco negro, à época chamado por Schwarzschild de “singularidade”. O termo buraco negro só seria cunhado em 1967, pelo físico americano John Archibald Wheeler (1911-2008), em palestra proferida no Instituto Goddard de Estudos Espaciais, da Nasa.
Schwarzschild chegou a enviar o rascunho de seus estudos para Einstein ainda em 1915. O pai da Teoria da Relatividade Geral ficou inicialmente entusiasmado com a ideia e a apresentou à Academia Prussiana de Ciências após a morte do colega, em 1916. Entretanto, Einstein fez ressalvas às conclusões de Schwarzschild, classificando os buracos negros como uma mera curiosidade, muito distante de uma teoria comprovável. “A singularidade de Schwarzschild não existe na realidade física”, sentenciou o Nobel de Física de 1921. Para Einstein, um buraco negro implicaria a existência de algo que se desconectaria do espaço-tempo — seria capaz de rasgar aquela “rede de pesca” de que se falou antes para ilustrar a Teoria da Relatividade Geral, obrigando tudo o que existisse a cair ali, sem chance de ser resgatado. “Acontece que não tardou para os cientistas aprenderem como as estrelas vivem e morrem, e concluírem definitivamente que, de fato, era possível, ao fim da vida das maiores delas, o seu colapso resultar numa espécie de ralo cósmico — o buraco negro — por onde parte da massa do universo fluiria”, disse a VEJA o engenheiro brasileiro Nilton Renno, que atua na pesquisa da formação de planetas na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos. “O formato do buraco negro corresponde exatamente aos cálculos de atração gravitacional que sustentam a Teoria da Relatividade Geral”, explica Renno. Eram esses cálculos, aliás, que permitiam aos cientistas simular as representações gráficas dos buracos negros.
Se tudo o que foi observado até agora sobre o M87 é consistente com a teoria de Einstein, não se pode descartar a possibilidade de que observações mais detalhadas de outros buracos negros revelem características inesperadas desses corpos celestes — principalmente no que diz respeito à velocidade com que eles se movimentam. Isso poderia elucidar, sobretudo, uma hipótese do físico inglês Stephen Hawking (1942-2018), que há mais de quarenta anos escreveu que o universo é repleto de partículas regurgitadas por buracos negros ao mesmo tempo em que eles estão absorvendo matéria. Nesse processo, acreditava Hawking, o buraco negro perderia energia — levada pelas tais partículas — e massa, até o seu completo desaparecimento. As partículas seriam, então, o único testemunho do buraco negro extinto. Sobre isso, ainda pouco se sabe.
O fascínio exercido pelos buracos negros está longe de se restringir ao campo científico. No cinema, por exemplo, o conceito de distorção do tempo causada pela gravidade aparece em clássicos que nada têm a ver com buracos negros, como O Planeta dos Macacos, do cineasta francês Pierre Boulle (1968). Nele, um astronauta passa por uma nebulosa e tem sua realidade temporal distorcida, o que o leva para um planeta onde os símios, não os humanos, prosperaram. No filme de ficção científica Interestelar (2014), do diretor inglês Christopher Nolan, faz parte da trama um buraco negro supermaciço, o monstruoso Gargantua — uma espécie de pino cósmico que roda velozmente sobre si mesmo, mas em seu horizonte de eventos é capaz de abrigar planetas que poderiam receber humanos que tentam fugir de uma Terra devastada por mudanças climáticas. Para representar o buraco negro, a produção do longa contratou um dos mais respeitados físicos modernos, o americano Kip Thorne. A intenção foi criar uma história o mais plausível possível do ponto de vista científico. Assim, foi feita uma simulação realística de um buraco negro e da visão que os humanos teriam se chegassem lá. Até a divulgação da foto do M87 aquela era considerada uma das mais perfeitas representações de um buraco negro.
Para alguns pesquisadores, faz sentido dizer que, daqui a muitos bilhões ou talvez trilhões de anos, acontecerá a morte do universo tal como o conhecemos hoje — embora muito falte ainda para conhecer. A extinção do cosmo se daria especialmente pelo esgotamento de energia dos corpos que o compõem. Quando isso estiver prestes a ocorrer, as únicas fontes de energia disponíveis serão justamente aquelas provenientes das estrelas que os buracos negros tiverem atraído para si. Eis aí o vislumbre de um futuro: a civilização, se ainda existir alguma, provavelmente habitará em um dos gigantes que hoje engolem parte do espaço.
Publicado em VEJA de 17 de abril de 2019, edição nº 2630
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