Só mesmo um planeta vermelho, com nome de deus mitológico da guerra, para mudar por alguns instantes o foco de atenção da humanidade, mergulhada há meses na crise pandêmica da Covid-19. Marte é o assunto do momento, desde que uma caravana de naves espaciais chegou lá depois de seis meses e meio de jornada, singrando o vácuo espacial. No começo de fevereiro, as sondas dos Emirados Árabes e da China entraram em órbita, mas o convidado especial era aguardado para 18 de fevereiro. E, na hora programada, ele apareceu. Mal cumprimentou os colegas de viagem e já entrou na atmosfera rarefeita como um cometa, a 20 000 quilômetros por hora, de forma autônoma, respondendo a comandos pré-programados. O escudo de calor, o paraquedas e os retrofoguetes de um guindaste aéreo foram reduzindo o ímpeto do visitante, até ele pousar suavemente no poeirento solo marciano e disparar um sinal em direção às sondas americanas e europeias a centenas de quilômetros de altitude, que retransmitiram a mensagem para a Terra: o Perseverance, quase se reconhecendo como humano, estava bem de saúde. E, como se descobriria algumas horas depois, havia gravado em alta resolução sua descida, seu pouso, a paisagem em volta e até o som dos ventos em Marte — um feito inédito para a ciência.
Quase tudo é novidade na Missão Marte 2020 (assim batizada porque partiu da Terra em julho do ano passado). O Perseverance — chamado de Percy pelos engenheiros da Caltech, o Instituto de Tecnologia da Califórnia onde foi montado — é o rover (jipe-robô) mais avançado já construído. Seu irmão mais velho, o Curiosity, que está em solo marciano desde 2012, é parecido com Percy, mas, até por ter sido fabricado há dez anos, sua tecnologia está defasada e ele não tem os equipamentos de última geração embarcados pela Nasa nesta missão. Do tamanho de um carro, com seis rodas e massa de 1 tonelada, o novo viajante tem nada menos do que 23 câmeras, sendo dezesseis para engenharia e ciência e sete para captura de imagens, muitas delas em alta resolução. Os vídeos e fotos que estão sendo revelados não têm precedente na história da exploração espacial: são coloridos e nítidos. Além disso, um microfone supersensível conseguiu captar, pela primeira vez, o áudio em um mundo alienígena — o som de uma suave brisa perpassando a cratera Jezero, onde pousou o invasor terráqueo.
Jezero, também conhecida como a “cratera do lago”, tem 45 quilômetros de largura e será vasculhada por Percy pelos próximos anos, se o motor nuclear dele não falhar. Outrora um delta (lago formado por mais de um rio), Jezero pode ter sido berço de vida 3,5 bilhões de anos atrás. Os astrobiólogos estão convencidos disso e querem que o rover use seu espectrômetro, radar e câmera de raios X para comprovar a tese, encontrando resíduos de vida microbiana nas rochas.
Percy, no entanto, não está sozinho nessa missão: em órbita, cinco sondas recebem e transmitem dados para o veículo. Inclusive, a Reconnaissance, da Nasa, em operação desde 2006, fotografou na superfície o jipe e os equipamentos que auxiliaram na descida: o escudo de calor, a concha protetora e o guindaste que caiu longe depois de cumprir sua tarefa. Além disso, Percy trouxe consigo um companheiro: Ingenuity, helicóptero de 1,8 quilo que deve ser acionado em abril. Trata-se de outro fato inédito: será o primeiro voo em outro planeta de uma aeronave feita pelo homem.
Enquanto gira suas rodas onde nenhum rover jamais esteve, em busca de prova de vida ancestral, Percy continuará dando exemplos de produtividade e inovação, como se a Nasa e o Laboratório de Jato-Propulsão (a fantástica fábrica de robôs da Caltech) precisassem justificar o investimento de 2,7 bilhões de dólares em seu menino dos olhos. Enquanto enfrenta as intempéries de Marte, com temperaturas que vão a 50 graus negativos nesta época, ele coletará amostras, guardando-as em tubos para serem recolhidas em missões futuras. Além disso, testará um aparelho em sua estrutura capaz de gerar oxigênio a partir do irrespirável dióxido de carbono da atmosfera. Trata-se de um experimento preliminar de um equipamento maior capaz de sustentar vida quando o homem tentar pisar em Marte na próxima década.
Percy começará a trabalhar duro só no segundo trimestre. No momento, seus softwares estão sendo atualizados e seus comandos, checados. Mais fotos devem ser divulgadas em breve, mas as descobertas não virão tão cedo. E, se depois de tanto esforço nunca vierem, Marte voltará ao imaginário popular como a “magnífica desolação”, termo cunhado por Buzz Aldrin, companheiro de Neil Armstrong na Apollo 11 e segundo homem a pisar na Lua. Em 1969, foi assim que ele retratou o satélite natural da Terra: uma imensidão tão inóspita e desprovida de vida que chega a ser linda. Será uma definição também adequada ao planeta vermelho, a menos que a perseverança do homem e sua máquina provem o contrário.
Publicado em VEJA de 3 de março de 2021, edição nº 2727