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Vespeiro das emendas acirra os ânimos entre governo, Congresso e Judiciário

Mais do que cargos e outras benesses oficiais, elas são a chave da governabilidade de Lula — e também representam o maior risco à articulação política

Por Daniel Pereira Atualizado em 16 ago 2024, 12h57 - Publicado em 16 ago 2024, 09h20

A relação entre Lula e a cúpula do Congresso é baseada em pragmatismo e desconfiança. Com a esquerda minoritária nas duas Casas, o presidente se viu obrigado a negociar, fazer concessões e desistir de promessas de campanha, como deter o avanço dos parlamentares sobre o Orçamento da União. Já o grosso de deputados e senadores, depois de acumular poder na gestão de Jair Bolsonaro, aceitou estabelecer um mínimo de parceria com a gestão petista, menos por afinidade de ideias e mais por gostar de viver nos braços do governo, qualquer governo, de esquerda, direita ou centro, tanto faz. Essa simbiose permitiu a aprovação de projetos importantes da pauta econômica, como o novo marco fiscal e a reforma tributária, e resultou no desembolso bilionário de emendas parlamentares, a moeda corrente que sustenta até aqui um ambiente de relativa harmonia entre Executivo e Legislativo. Mais do que cargos e outras benesses oficiais, as emendas são a chave da governabilidade no terceiro mandato de Lula — e, no outro lado da moeda, também representam o maior risco à articulação política de sua administração.

CANETADA - Flávio Dino: o ministro suspendeu os repasses por falta de transparência
CANETADA – Flávio Dino: o ministro suspendeu os repasses por falta de transparência (Ton Molina/Fotoarena/.)

A lógica é simples. Deputados e senadores topam aprovar projetos de interesse do Palácio do Planalto e engavetar medidas capazes de constrangê-­lo se as emendas parlamentares são pagas. Os líderes do Congresso seguem a mesma linha porque só mantêm influência sobre os liderados quando as verbas são desembolsadas. No Orçamento deste ano, as emendas de todos os tipos totalizam 50 bilhões de reais. Ciente de como a banda toca, o governo liberou cerca de 30 bilhões de reais até o início de julho, considerando restos a pagar de anos anteriores. Numa única semana, destravou 9 bilhões de reais. A parceria entre as partes parecia pacificada e revigorada até a desconfiança voltar, nos últimos dias, à mesa de negociação. A história tem três atos. Na última campanha eleitoral, Lula chamou o orçamento secreto — viabilizado por meio da emenda de relator, que chegou à casa de 20 bilhões de reais em apenas um ano — de “bandidagem” e “excrescência política”, e prometeu moralizar a questão. No exercício do mandato, sem força política, ele pouco fez nessa seara. O Supremo Tribunal Federal (STF), então, entrou em campo com decisões que desagradaram aos congressistas e que, segundo eles, foram feitas sob encomenda do presidente da República.

Divulgadas no início do mês, as duas decisões iniciais suspenderam o desembolso de restos a pagar do extinto orçamento secreto, de emendas de comissão e das chamadas emendas Pix, porque elas contêm um vício comum: a falta de transparência. No caso do notório orçamento secreto, não era divulgado qual parlamentar indicava determinado recurso. Tudo ficava na conta do relator do Orçamento, que apenas formalizava acordos políticos firmados longe da luz do sol. No caso das emendas Pix, prefeituras e estados contemplados têm o direito de gastar o dinheiro como bem entenderem. Na prática, a população fica sem saber o destino final da verba, o que torna praticamente impossível qualquer tipo de fiscalização. A iniciativa do Supremo tem o objetivo de permitir que a sociedade acompanhe todo o percurso do dinheiro — o parlamentar responsável pela indicação, a área contemplada, o prestador de serviço contratado etc. Acostumados com regras frouxas, congressistas não gostaram das novas exigências e prometeram retaliar o governo e o Supremo caso não haja um acordo que destrave o pagamento das emendas suspensas.

A REAÇÃO - Rodrigo Pacheco: negociação para resolver impasse e revide imediato
A REAÇÃO – Rodrigo Pacheco: negociação para resolver impasse e revide imediato (Jefferson Rudy/Ag. Senado)
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Alertas nesse sentido já foram dados. Presidente da Comissão Mista de Orçamento, o deputado Julio Arcoverde (PP-PI) adiou a leitura do relatório preliminar da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2025, um projeto importante para o governo, até que a questão das emendas seja resolvida. Já o presidente da Comissão de Finanças e Tributação da Câmara, Mário Negromonte Jr. (PP-BA), foi mais enfático: “É algo lamentável ver essa decisão do STF, fazendo essa interferência, mas certamente o Parlamento dará uma resposta à altura”. Desde o início do terceiro mandato, Lula adotou como estratégia recorrer ao Supremo para reverter derrotas sofridas no Congresso, como ocorreu no caso da desoneração da folha de pagamento. Essa tabelinha irrita os parlamentares, que também se queixam do “ativismo judicial” e do que consideram abuso de poder por parte de magistrados — entre eles, Alexandre de Moraes. Não à toa, proliferam projetos para restringir a atuação do STF, os quais ou estão parados ou avançam a passos lentos, mas servem como instrumento de pressão.

A contrariedade com a parceria entre governo e Supremo ganhou fôlego no caso das emendas porque as decisões sobre o tema foram proferidas pelo ministro do STF Flávio Dino, ex-titular da Justiça no atual mandato de Lula. “O governo está indo para o enfrentamento com o Congresso com a ajuda do STF, para não cumprir acordos costurados pelo próprio governo”, disse a VEJA um líder de partido, que pediu para não ser identificado. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já até declarou publicamente que as emendas Pix deveriam ser aperfeiçoadas. Uma das propostas é que esse recurso só seja liberado quando houver a previsão de sua aplicação para uma ação específica. Diante das reclamações dos colegas, Lira procurou o ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, para tratar do assunto. Nos bastidores, busca-se um acordo que contemple Judiciário e Legislativo — e que seja intermediado com a ajuda de integrantes do Executivo, o que não ocorreu até o fechamento desta edição. “Não tem qualquer digital do governo naquilo que é uma decisão da Suprema Corte”, disse o ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha. “Isso não vai atrapalhar a votação de projetos prioritários para o país.”

BATEU, LEVOU - Arthur Lira: sem acordo, tramitação de projetos foi suspensa
BATEU, LEVOU - Arthur Lira: sem acordo, tramitação de projetos foi suspensa (Edilson Rodrigues/Ag. Senado)
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Nos últimos anos, os parlamentares ganharam poder na questão orçamentária. As emendas, que até o segundo mandato de Lula eram liberadas apenas quando o presidente queria, tornaram-se pagamento obrigatório — no caso das individuais e de bancada — e cresceram de valor ano a ano, até chegar aos 50 bilhões de reais atuais. Deputados e senadores asseguraram, assim, uma fonte permanente de custeio para seus redutos eleitorais. Quando perguntados sobre a conquista de poder, eles costumam dizer que ninguém conhece tão bem a realidade dos municípios como eles, que, por isso mesmo, são quadros qualificados para decidir a destinação de recursos públicos. Já o governo pondera que os congressistas, muitas vezes, direcionam verbas para iniciativas que não são prioritárias e não atacam problemas crônicos do país. Movem-se apenas pelo desejo de beneficiar aliados políticos. Essa posição do governo encontrou guarida numa terceira decisão de Flávio Dino, tornada pública na última quarta-feira, 14. Nela, o ministro também suspendeu as emendas individuais e de bancada até que o Congresso edite regras que garantam não só a “transparência” como a “eficiência” dos recursos liberados. A menção à eficiência faz toda a diferença na disputa em jogo.

Provocado pelo PSOL, partido da base de Lula, o ministro declarou que os parlamentares não têm liberdade irrestrita para escolher onde aplicar as emendas individuais e de bancada, como ocorre hoje. E que elas só devem ser liberadas se atendidos requisitos técnicos, cuja verificação cabe ao Poder Executivo. O novo entendimento não deixa dúvida sobre quem ganha e quem perde. É aí que reside o problema. Antes da terceira decisão, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), conhecido pela moderação, pregava cautela. “Estamos estudando a apresentação de algum modelo que possa garantir a participação parlamentar juntamente ao Executivo para definição orçamentária do Brasil, mas sempre primando pela qualidade do gasto público”, declarou o senador. Após Dino cutucar de vez o vespeiro, a cautela foi deixada de lado. Em revide à suspensão das emendas impositivas, a Comissão Mista de Orçamento rejeitou, em votação que ainda precisa ser ratificada em sessão do Congresso, uma medida provisória que abria crédito extraordinário de 1,3 bilhão de reais ao Poder Judiciário. O enxame está solto.

Publicado em VEJA de 16 de agosto de 2024, edição nº 2906

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