VEJA percorreu o Museu Nacional, no Rio, que se prepara para reabrir após incêndio
Renascendo das cinzas, ele começa a reviver seu esplendor

Depositário do maior acervo de história natural da América Latina, o Museu Nacional, fundado em 1818 no centro carioca, tornou-se uma vigorosa instituição científica, a mais antiga do Brasil. No fim do século XIX, virou também cartão-postal imperdível, ao transferir-se para o belo Palácio de São Cristóvão, que havia abrigado até 1889 a família real portuguesa e, depois, o clã imperial. Sua criação por dom João VI se insere na bem-vinda ideia da preservação da história e do patrimônio. Sob esse impulso, acabou alcançando a extraordinária marca de 20 milhões de itens no acervo, alguns deles amealhados pela realeza em viagens mundo afora.

Em 2 de setembro de 2018, o bicentenário palácio, palco da assinatura da independência brasileira, foi engolido pelas chamas de um incêndio causado por falha elétrica — e 85% da riqueza ali guardada não resistiu. Foram perdas irreparáveis, como o desaparecimento de coleções de fósseis de dinossauros, múmias egípcias e centenas de milhares de livros. Agora, o emblemático casarão, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), anda às voltas com mais um capítulo de sua vasta história — este cercado de expectativas e boas razões para celebrar.
O museu se prepara para reabrir as portas em 5 de junho para exibir pela primeira vez ao público parte da reforma geral que empreendeu após o fatídico dia em que foi ao chão. A reportagem de VEJA teve acesso exclusivo ao interior, que ainda passa por hercúleo trabalho de reconstrução. Entre andaimes e o constante ruído de martelos, uma equipe se empenha em dar vida nova ao edifício, cuja imponente fachada renasceu coberta pelo tom amarelo-ocre original, que havia sido substituído por um rosa. Um passeio por lá ajuda a ter uma dimensão da destruição — paredes seguem chamuscadas e gigantes vigas que compõem a estrutura do prédio ficaram distorcidas. Os visitantes que cruzarem as imponentes portas de metal poderão ver de perto a epopeia que vem sendo colocar o museu novamente de pé e também circularão por três recauchutados ambientes de exposição. “Nosso compromisso é restaurar o maior número possível de elementos artísticos e históricos que sobreviveram ao incêndio e entregar um museu inovador”, afirma Larissa Graça, gestora técnica e estratégica do Projeto Museu Nacional Vive.

A grande novidade da abertura em caráter especial (vai até fim de julho) será o esqueleto de 15 metros e 80 toneladas de uma baleia cachalote encontrada em 2014 no Ceará e minuciosamente remontado por uma entusiasmada turma de especialistas. “O crânio é a parte mais difícil, pelo tamanho e pelo peso”, explicou a VEJA o biólogo Antônio Carlos Amâncio, à frente do quebra-cabeça. Outra preciosidade do acervo, já à espera do público bem na entrada, é o meteorito do Bendegó, achado na Bahia em 1784 e levado ao Rio um século mais tarde, exemplar maior do valioso conjunto geológico formado por rochas e minerais naturalmente mais resistentes à fúria do fogo. Uma terceira sala abrigará mais itens, ainda a ser definidos pelos curadores, que fornecerão aos curiosos um aperitivo do que está por vir em 2028, quando as catracas serão definitivamente liberadas. “Há ainda um longo caminho a percorrer, mas vou ficar muito emocionado apenas de ver visitantes no museu”, diz o diretor Alexander Kellner.
Ao longo da obra, surpresas foram surgindo conforme a equipe ia cavando fundo entre os escombros — uma verdadeira aventura arqueológica da qual VEJA pode conferir uma parte. Objetos históricos, pinturas decorativas, um piso ornado com losangos e até a estrutura superior de uma capela da era imperial emergiram em meio aos trabalhos. Também vieram à luz velhas tubulações dos tempos em que o local era um reluzente palácio, chamando a atenção pelo elevado grau de engenhosidade. “Diante de toda a perda, o resgate arqueológico acabou trazendo resquícios da história que ajudam a entender como os moradores viviam no palácio”, afirma Marcos André, arqueólogo do Museu Nacional. Tudo isso será devidamente exibido, mas não agora.

Em um esforço à parte, os cientistas vêm se debruçando todos esses anos sobre a recomposição do crânio de Luzia, o fóssil mais antigo da América Latina, que chegou a ser dado como perdido, já que se fragmentou por inteiro. A boa notícia do time reunido no Laboratório Central de Conservação e Restauração da UFRJ, à qual o museu está ligado, é que há chances de voltar ao que era antes das labaredas. Neste árduo período de recuperação do museu, 14 000 itens foram incorporados ao acervo, que ganhará três blocos de exposição e novos circuitos temáticos. Uma aquisição para lá de festejada foi um manto tupinambá de mais de três séculos, devolvido em 2024 pelo Museu Nacional da Dinamarca. Há negociações ainda com a Suécia, que pode vir a doar exemplares que enobreceriam a visita.

Em meio à obra tão radical, aproveitou-se o ensejo para dar uma renovada que une estética à conservação, incluindo um generoso teto de vidro em uma zona que ficava a céu aberto. “A claraboia proporcionará mais conforto e segurança, além de contribuir para a preservação das peças em exposição”, esclarece o trecho de um relatório da organização Museu Nacional Vive. Para que o triste episódio do incêndio não deixe de ser lembrado, enfatizando que é preciso investimento e esforço para que não se repita, haverá uma área dedicada à memória de itens que se foram com as chamas, localizada justamente na sala onde teve início o curto-circuito que consumiu parte da riqueza ali concentrada.

Não vem sendo nada trivial a tarefa de reerguer um edifício como esse — ainda faltam uns 30% da verba necessária para a conclusão da obra, estimada em 516,8 milhões de reais. A maior fatia até então veio dos cofres públicos. “Dependemos de dinheiro e de estratégias políticas para cumprir o cronograma”, avisa a arquiteta Verônica Pimentel, responsável pelo gerenciamento da obra. Vale o empenho. “Estamos falando de uma instituição que colocou o Brasil na rota da ciência internacional”, ressalta o historiador Paulo Rezzutti. Com tão rico passado, a reconstrução do Museu Nacional pode sinalizar para um futuro em que preservar a ciência e a história seja um valor inegociável.
Publicado em VEJA de 9 de maio de 2025, edição nº 2943