Uma tragédia no sertão: por que o jumento mobiliza, enfim, a sociedade
Depois de séculos de trabalho forçado nas lavouras do agreste, um alerta: o perigo de extinção é real e iminente

Na canção Apologia ao Jumento, um pequeno clássico popular, Luiz Gonzaga lembrou: “É verdade, meu senhor / essa história do sertão / padre Vieira falou / que o jumento é nosso irmão”. Expressão da glória do equídeo no agreste nordestino, os versos de Gonzagão mostram como a besta de carga trazida da África pelos portugueses, de papel decisivo no ciclo econômico do Brasil Colônia, virou um dos símbolos da nossa cultura regional. Frequentemente associado à teimosia, o bicho “empaca” não por burrice, mas por sentir perigo ou exaustão, como animal perspicaz e atento à realidade. A resistência ao calor e às duras condições geográficas, porém, não lhe renderam aposentadoria tranquila.
O perigo de extinção é real e iminente. Em 1999, havia cerca de 1,37 milhão de jumentos no Brasil. Em 2025, o número caiu para aproximadamente 78 000. Direto ao ponto: existem apenas seis animais para cada 100 que existiam há três décadas. “Por trás da matança está uma estatal chinesa, que usa a pele do animal para produzir colágeno, matéria-prima do ejiao, produto da medicina chinesa que promete o sonhado rejuvenescimento sem cirurgia e também maior potência sexual”, diz Adroaldo José Zanella, professor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP). Os chineses, por óbvio, rechaçam a acusação.
O alerta reverberou como um zurro no descampado. A ausência de uma legislação específica e robusta para a proteção dos jegues no Brasil tem sido motivo de preocupação de cientistas, ativistas e organizações de defesa da fauna. Há projetos de lei em tramitação no Congresso para protegê-los. Um deles, de autoria do deputado Ricardo Izar (Republicanos-SP), busca declarar o Equus asinus como patrimônio nacional e proibir seu abate em todo o território.
É impositivo tirar a legislação do atoleiro em que está parada porque há caos na criação e abate dos asnos, tratados com displicência e arrogância. Chora-se pelos ursos panda, mas não pelo jerico. Há quem ria da preocupação com o bicho, por considerá-la desnecessária, mas é postura besta. “Não existem criadouros, mas depósitos de animais, sem qualquer condição de higiene e saúde”, diz Pierre Escodro, professor da Universidade Federal de Alagoas e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). É questão de aritmética básica. A gestação leva doze meses. Depois são necessários mais três anos até que o animal chegue à idade de ser abatido. Como a criação implica investimento a longo prazo, prevalece a preferência pelo abate extrativista cruel e mais lucrativo.

A diminuição da população de jumentos no Brasil é um tema complexo, que envolve questões de conservação, legislação e, claro, preservação de um patrimônio cultural brasileiríssimo. A mobilização de diversos setores da sociedade é crucial para buscar soluções sustentáveis e garantir o futuro da emblemática espécie. Nas últimas semanas, o tema viralizou nas redes sociais, com um vídeo-protesto do artista plástico David Ferreira, conhecido por transformar o próprio corpo em suporte para a arte. Ele cobriu o rosto e o torso com desenhos de jegue e de pessoas com placas em riste pelo fim da mortandade sem controle. Mais de 1 milhão de pessoas viram a grita.
O tema atravessou fronteiras nos últimos dias. Na África, há uma moção assinada por mais de cinquenta países pela proibição do abate. Em Portugal, o bicho passou a ser valorizado pelos benefícios que pode trazer. O leite da fêmea é usado para fazer cremes e substituir a amamentação materna. Com tudo isso, se continuar na mesma toada, o extermínio dos jumentos brasileiros pode até atrapalhar o acordo do Mercosul com a União Europeia. O tratado inclui compromissos explícitos com o bem-estar animal. “Também abala a imagem do agronegócio brasileiro para o mundo”, diz o professor Zanella. “É um risco que o Brasil não deveria assumir.” Afinal, como lembrou o Rei do Baião, o animal é “nosso irmão”.
Publicado em VEJA de 18 de julho de 2025, edição nº 2953