Uma noite de terror
Depois de oito meses de paquera numa rede social, Elaine convidou Vinícius para ir à sua casa. Foi espancada. Salvou-se por um triz
Entre animada e ansiosa, a paisagista Elaine Caparróz, de 55 anos, preparou-se para enfim encontrar-se frente a frente, pela primeira vez, com o rapaz com quem havia oito meses trocava mensagens e fotos em uma rede social. Julgava que o conhecia bem o suficiente para recebê-lo em casa. Ajeitou uma mesa com queijos e vinhos, arrumou-se e esperou. Às 22h30, o estudante de direito Vinícius Serra, de 27 anos, tocou a campainha do apartamento 1606, no edifício Torre Charles de Gaulle, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Cerca de duas horas depois, os gritos começaram: Elaine foi esmurrada, arrastada, mordida e brutalizada com tamanha violência que, quando foi encontrada, às 5 da manhã, seu sangue manchava paredes e chão do apartamento, compondo um cenário de horror. “Ele só gritava e me xingava. (…) Eu tentava me defender, mas sentia os murros acertando meu rosto. Cada murro que ele me dava, eu pensava que ia morrer”, narrou ela, com dificuldade, em um vídeo gravado após dar entrada no hospital na manhã do sábado 16. Estava desfigurada.
Até agora não se sabe o que desencadeou a tenebrosa madrugada de tortura. Elaine relata que conversaram, comeram e beberam, e em dado momento sentaram-se para assistir a um filme de terror, escolhido por ele. Ela adormeceu e acordou com os punhos de Vinícius — que é faixa-marrom de jiu-jítsu — martelando seu rosto. Ele, que está preso, afirma que sofreu “um surto” e não se lembra de nada. Nenhum dos dois menciona se tiveram relações sexuais. “Algo aconteceu ali. Tudo ficará mais claro depois que a vítima puder ser ouvida”, diz a delegada Adriana Belém, que cuida do caso e aguarda autorização médica para colher o depoimento de Elaine. Se há dúvida sobre os motivos, as consequências do bárbaro espancamento são evidentes.
Elaine foi encontrada desmaiada e sem roupa na sala, em uma poça de sangue. Além de esmurrar seu rosto, Vinícius a arrastou pelos cabelos, arremetendo sua cabeça contra o chão, as paredes e os móveis. Ela só foi ver os machucados no dia seguinte, no hospital. Enquanto examinava no espelho as feições inchadas e feridas, conta seu irmão, Rogério Peres, chorava lágrimas vermelhas do sangue dos machucados em volta dos olhos.
A amigas ouvidas por VEJA, Elaine contou que chegou a oferecer dinheiro para parar de apanhar. Em vários momentos, gritou “Socorro” e “Ai, ai, ai”. Às 4 da manhã, o segurança Juciley Andrade, de 44 anos, fazia sua ronda e ouviu os berros. “Toquei a campainha. O rapaz gritou: ‘Arromba’. Desci para chamar a polícia. Sem ninguém no corredor, ele abriu a porta e tentou fugir. Mas eu segurei o agressor lá embaixo até a chegada dos PMs. Estava com a camisa cheia de sangue”, relata Andrade. O segurança o entregou e subiu de novo ao apartamento. “Não tem nem como descrever o que vi ali. Tanto sangue, uma coisa impressionante. Se eu tivesse demorado mais quinze minutos, ela estaria morta”, lembra.
Mesmo sob ataque brutal, Elaine teve reflexos para se defender do golpe chamado mata-leão, com o qual ele tentou asfixiá-la apertando seu pescoço com o antebraço, graças a uma técnica de defesa pessoal que aprendeu com o filho, Rayron Gracie, ele também lutador de jiu-jítsu, de 17 anos. “Ela cruzou os braços na altura do pescoço, impedindo o acesso dele. Levou mordidas em várias partes do corpo, mas não baixou a guarda”, disse a faixa-preta Kyra Gracie, prima de Rayron, que mora em Nova York e ao chegar ao Rio, na terça 19, foi abraçar a mãe no hospital. O pai do adolescente é Ryan, outro integrante da família Gracie — sinônimo de lutas marciais no Brasil e fora dele —, lutador que morreu em 2007. Ele e Elaine não chegaram a casar nem morar juntos, mas Ryan, até morrer, era presente, mantinha contato e às vezes levava o filho à escola.
“A gente nunca acha que um horror desses pode chegar tão perto. Provavelmente esse psicopata tem um histórico de violência contra mulheres”, desabafa Kyra. Vinícius registra outra passagem pela polícia: agrediu o irmão Diego, deficiente físico. A ocorrência foi feita pelo próprio pai, Zacarias de Lima, em 8 de fevereiro de 2016, em uma delegacia de Copacabana, na Zona Sul do Rio. Lima acordou de madrugada com gritos vindos do quarto dos filhos, abriu a porta e viu Vinícius desferindo golpes de jiu-jítsu em Diego, a quem acusava de lhe ter roubado 1 200 reais (o dinheiro foi encontrado). Ao tentar apartá-los, o pai também foi atingido. Passado um tempo, ele retirou a denúncia.
A lei define o ataque a Elaine como tentativa de feminicídio, situação em que a mulher é agredida em ambiente doméstico e familiar ou a violência envolve menosprezo e discriminação. Em 2017, tramitava nos tribunais brasileiros 1,4 milhão de casos enquadrados na Lei Maria da Penha, que desde 2006 criminaliza a agressão contra mulheres (veja o relato da modelo Luiza Brunet sobre o que sofreu na própria pele). No mesmo ano, 2 643 foram vítimas de sua expressão mais bárbara, o feminicídio — o que equivale a sete mulheres abatidas por dia. Os números situam o Brasil na vexaminosa posição de quinto país com mais ocorrências. O feminicídio ingressou no Código Civil com todas as letras há quatro anos, apesar de ter sempre existido e estar intrinsecamente ligado ao caldo de cultura do machismo. “No Brasil colonial, a Igreja permitia que o homem batesse na sua mulher caso ela merecesse”, diz a historiadora Mary Del Priore.
O psicólogo José Luiz Querido, que trabalha com grupos de agressores de mulheres, afirma: “Eles demoram a reconhecer que cometeram um crime, tamanha a naturalização da violência”. Um levantamento do Ministério Público de São Paulo mostra que 75% dos casos de feminicídio têm como motor ciúme, sentimento de posse e pedido de separação por iniciativa da mulher. Há quatro meses, a atriz Cristiane Machado, 37 anos, foi submetida a uma sessão de tortura pelo ex-marido e ex-diplomata Sergio Schiller Thompson-Flores, 59 anos, que está preso. “Ele chegou em casa nervoso. Perguntei por quê, e ele começou a me bater e tentou me enforcar”, relatou Cristiane a VEJA.
Até ser detido, Vinícius, o espancador de Elaine, morava em um apartamento de classe média no bairro do Leme, na Zona Sul. Entrou em uma faculdade particular para estudar direito em 2014, aos 22 anos. Frequentou o curso durante três semestres e sumiu. Segundo colegas, sentava-se no fundo da sala, faltava muito e não falava com quase ninguém. “Ouvi histórias de confusões, como brigas em boates, mas na faculdade não era grosseiro nem violento. Parecia tímido”, diz um deles, que pede anonimato.
Uma semana antes do crime, Vinícius participou normalmente dos treinos de jiu-jítsu, esporte em que competiu até 2018. Alguns lutadores contam que ele consumia anabolizantes, além de maconha e álcool e, eventualmente, cocaína. Sob efeito de drogas, fazia provocações e puxava brigas. Estivesse ou não alterado por alguma substância, na madrugada do sábado 16 Vinícius virou um monstro. “Já vi vários casos graves nos meus trinta anos de polícia, mas aquele apartamento ensanguentado me chocou”, diz a delegada Adriana. O rapaz não passou por exame toxicológico no momento da prisão. A polícia investiga a possibilidade de premeditação, já que Vinícius deu nome falso – Felipe — na entrada do prédio.
Elaine chegou ao hospital em estado grave, com dificuldade para respirar. Levou quase quarenta pontos dentro da boca, sofreu fraturas múltiplas no rosto, perdeu dois dentes, arrancados pela raiz, apresentou contusão no pulmão e quadro de insuficiência renal. “Mal conseguia olhar para o rosto da minha irmã. Não tem como se acostumar com aquela imagem”, conta o irmão Rogério. Ela terá de passar por cirurgias de reconstrução dos ossos da face, do nariz e da boca, já que a parte superior da gengiva afundou. “Está muito abalada, às vezes diz frases desconexas, lembra detalhes daquela noite e tem momentos de pânico”, relata Rogério. De acordo com a psiquiatra Fátima Vasconcellos, coordenadora da Associação Brasileira de Psiquiatria, nesses casos é comum surgir um quadro de transtorno de stress pós-traumático. “É como se a vítima tivesse a sensação de que o trauma está acontecendo de novo. Ela se sente ameaçada, ansiosa, e isso pode desencadear sintomas de depressão e síndrome do pânico”, explica.
A última postagem de Elaine, assídua nas redes sociais, foi um vídeo feito no dia do seu aniversário, 7 de fevereiro, em um restaurante. Tinha voltado recentemente de uma temporada na Austrália, onde pretendia estudar inglês, mas seu visto foi negado. Vaidosa, frequenta uma academia onde pratica ioga, spinning e musculação e gosta de fazer caminhadas em trilhas. Nascida em São Paulo, onde atuou como modelo por quinze anos, mudou-se para o Rio há duas décadas. Trabalhou como corretora de imóveis, teve um quiosque na praia e atualmente faz projetos de paisagismo.
A uma amiga que a visitou no hospital, Elaine fez um apelo: “Diga às pessoas que eu não conheci esse rapaz por nenhum aplicativo de encontros. Ele passou a me seguir nas redes sociais”. O vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente que usou o estupro para fazer piada com a deputada Maria do Rosário, aproveitou o ataque para defender uma bandeira da família: a de que, se Elaine tivesse uma arma em casa, poderia ter se defendido. Claro que poderia, se soubesse atirar. E, mesmo sabendo, também poderia ter levado um tiro.
Com reportagem de Fernando Molica
Publicado em VEJA de 27 de fevereiro de 2019, edição nº 2623
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