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Um tiro no escuro: a missão complexa de Lewandowski à frente da Justiça

Ministro assume de forma discreta em momento delicado para o país na área de segurança pública devido à preocupante escalada do crime organizado

Por Laísa Dall'Agnol Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Victoria Bechara Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Adriana Ferraz Atualizado em 4 jun 2024, 09h29 - Publicado em 19 jan 2024, 06h00

Em uma cerimônia rápida na quinta 11, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva confirmou Ricardo Lewandowski como ministro da Justiça. Teceu elogios ao ex-membro do STF, a quem chamou de “companheiro”, fez piada com a suposta resistência da esposa do indicado e mandou uma analogia sobre futebol dizendo que não escala o time de ninguém, ao comentar sobre quem fica e quem sai na pasta. Lewandowski, que só assumirá em 1º de fevereiro, entrou mudo e saiu calado — até a quinta 18, ainda não havia dado declarações sobre o futuro da pasta. Flávio Dino, que fica no posto até a troca, idem. No mesmo dia, o único a se manifestar foi o secretário-executivo Ricardo Cappelli, que não irá ficar no cargo. Mas foi uma declaração prosaica, dizendo que sairia de férias.

ALERTA - Andrei Rodrigues: conexão entre facções preocupa diretor da PF
ALERTA - Andrei Rodrigues: conexão entre facções preocupa diretor da PF (PF/Divulgação)

A leveza, o vazio e a falta de urgência que transpiraram durante a transição do ministério contrastavam com a crescente angústia da população em relação à segurança pública. Exemplos como o do Equador aumentaram por aqui o estado de alerta. No dia anterior à cerimônia de posse de Lewandowski, Daniel Noboa, presidente do país sul-americano que vive clima de pânico, decretara uma espécie de guerra civil para conter o assustador espetáculo proporcionado pelas facções criminosas, que tomaram as ruas, os presídios e até uma emissora de TV em uma afronta à autoridade do Estado. Um alerta em alto e bom som ao Brasil, onde o avanço das organizações criminosas, com conexões cada vez maiores com quadrilhas dos vizinhos de continente — e o rastro de violência que ele desencadeia —, é o maior desafio à espera do novo ministro da Justiça (veja o quadro).

arte Lewandowski

Não por acaso, Lewandowski priorizou o tema no início da montagem de sua equipe, escalando o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mario Sarrubbo, para a Secretaria Nacional de Segurança Pública. Desde que assumiu o comando do Ministério Público paulista, em 2020, ele colocou como meta combater as organizações criminosas, em especial o PCC, hoje a maior facção armada do país, com ramificações em diversos estados e conexões com o tráfico de drogas nas Américas, na Europa e na África. Em setembro de 2020, deflagrou a Operação Sharks, que, com outras ações, conseguiu bloquear mais de 1 bilhão de reais em bens do bando. Também aumentou o investimento no Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), que hoje faz uma operação a cada quatro dias, em média.

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Ao mesmo tempo que começou a se cercar de homens com o perfil de Sarrubbo, Lewandowski dá sinais de que haverá uma “despartidarização” do ministério. As primeiras movimentações indicam uma troca substancial do time liderado por Flávio Dino, com a prevalência de nomes considerados técnicos e ligados ao meio jurídico, mas essencialmente de confiança do novo ministro. A primeira convidada foi a advogada Ana Maria Alvarenga Mamede Neves para a chefia de gabinete. Ela está com Lewandowski desde 2010, quando assumiu o mesmo cargo no STF. Para secretário-executivo, número 2 da pasta, Lewandowski levará Manoel Carlos de Almeida Neto, ex-secretário-geral do Tribunal Superior Eleitoral e do STF. Ele assumirá o lugar de Ricardo Cappelli, que chegou a ser cotado para suceder Dino — ambos eram filiados ao PSB, assim como Augusto de Arruda Botelho, secretário nacional de Justiça, que também deverá ser trocado.

De certa forma, a saída de Dino neste momento foi conveniente para o governo. Para algumas alas importantes do PT, embora mereça elogios pelo espírito combativo, o ex-ministro não deixou legado importante na área de segurança, além de trazer o problema para o colo do Palácio do Planalto, com impacto negativo na popularidade de Lula. A ideia é que Lewandowski traga novidades nas estratégias de combate ao crime organizado, mexendo em alguns vespeiros, como a política de encarceramento em massa (o Brasil tem hoje 670 000 detentos). Num sistema sobrecarregado e incapaz de oferecer condições de reabilitação, o resultado prático é a transformação das cadeias em escolas de formação de novos soldados para facções como o PCC. Em 2018, Lewandowski defendeu que o sistema prisional era responsável por agravar o quadro de insegurança e violência. Agora, uma das cotadas para a Secretaria Nacional de Justiça é a advogada Dora Cavalcanti, que atua contra o encarceramento em massa e o racismo no sistema criminal.

É preciso lembrar que os problemas a serem enfrentados por Lewandowski no Ministério da Justiça não surgiram agora — e foram se agravando ao longo das décadas, o que aumenta o grau de desafio no seu enfrentamento. A atuação de grupos como PCC e Comando Vermelho há muito deixou de ser algo apenas da conta dos governos estaduais, porque se expandiu pelo país e gerou uma proliferação de grupos menores — a estimativa é que o Brasil tenha mais de cinquenta grupos armados. As falanges nacionais hoje têm conexões com gangues vizinhas e até de longe da América do Sul, como o Cartel de Sinaloa, no México, e a máfia italiana ‘Ndrangheta. Embalada pelo crescente volume do tráfico de armas e drogas, a expansão dessas gangues tem alimentado a espiral de violência em vários estados, como Rio de Janeiro e Bahia. A localização na fronteira com os principais produtores de pó e maconha, aliada à superlotação dos presídios e problemas sociais e estruturais, faz do país um terreno fértil para o crime. Segundo estudo da ONU, o Porto de Santos, em São Paulo, ocupou a segunda posição na lista de maiores apreensões de cocaína com destino à Europa em 2021, atrás só de Guayaquil, no Equador.

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CONEXÕES - Presos após levante no Equador (acima), combate ao tráfico na fronteira do Brasil com a Colômbia (à esq.) e ato contra a violência no Rio (abaixo): a criminalidade pressiona o poder público
CONEXÕES - Presos após levante no Equador (acima), combate ao tráfico na fronteira do Brasil com a Colômbia (à esq.) e ato contra a violência no Rio (abaixo): a criminalidade pressiona o poder público (Ecuadorean Armed Forces/AFP; CMA/Divulgação; Vanessa Ataliba/Zimel Press/Agência O Globo/.)

Os distúrbios no país sul-americano, aliás, ligaram de vez todos os alertas. Logo após a eclosão da violência no Equador, Flávio Dino mandou a Força Nacional de Segurança para o Mato Grosso do Sul, que se tornou uma espécie de base do PCC para conexões com grupos do Paraguai e de outros países. O controle das fronteiras é um problema antigo e nunca devidamente solucionado. No dia 8 de janeiro, o Comando Militar da Amazônia iniciou a Operação Espelhada, em parceria com o Exército da Colômbia, para trocar informações de inteligência e combater o tráfico na fronteira. O país, no extremo oeste do Amazonas, faz fronteira também com o Peru, que, ao lado da Colômbia, está entre os maiores produtores de cocaína da América do Sul. Levantamento feito pelo Fórum de Segurança Pública apontou 22 facções atuando na Amazônia, sendo sete de outros países, como as gangues venezuelanas que atuam até na Terra Indígena Yanomami, em Roraima. “A ausência do Estado potencializou a presença dessas facções, que ocuparam os vazios de poder”, afirma Aiala Couto, um dos responsáveis pelo estudo.

Há um outro desafio nada desprezível no horizonte: devolver aos cidadãos a sensação de segurança. Seis em cada dez brasileiros disseram ao Datafolha sentir medo de andar nas ruas. O mesmo instituto apontou em dezembro que 50% dos entrevistados consideravam ruim ou péssima a gestão Lula na segurança, enquanto 29% a avaliavam como regular e só 20%, como ótima ou boa. Alguns crimes subiram no atual governo, como estupro (16%) e feminicídio (2,3%). O número de homicídios teve leve queda (3,2%), mas o altíssimo número de mortes não permite comemorar. Entre janeiro e outubro foram 31 000 assassinatos — mais do que o número de mortos nos conflitos em Gaza (20 000) e Ucrânia (10 000). Também há preocupação com a alta letalidade policial, que deixou 5 200 mortos no ano passado.

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Responsável agora por lidar com todas essas questões, Lewandowski tem o perfil considerado ideal para tentar implementar um plano nacional de segurança mais efetivo. “O combate ao crime organizado exige diplomacia, interlocução com outros países. Mas também depende de integração entre os estados, de trabalho institucional interno”, afirma Leandro Piquet, do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas da USP. Também, claro, será preciso avaliar os programas existentes e ver o que se deve manter. “O controle do crime não se dará com medidas esporádicas e pontuais, ele precisa de continuidade”, diz Joana Monteiro, coordenadora do Centro de Ciência Aplicada à Segurança Pública da FGV. Dino ainda deixou tarefas pendentes, como a promessa de lançar um programa de recompra das armas em poder de civis. “Não há controle, pois a fiscalização é inadequada”, afirma Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz. Há quase três milhões de armas com civis no Brasil.

Diante do extenso rol de problemas e da maneira crítica com que a população avalia o trabalho do governo nessa área, seria desejável que a troca de guarda no ministério emitisse algum sinal de preocupação e um sentido de urgência. O crime organizado e a angústia da sociedade não têm trégua.

Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2024, edição nº 2876

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