Um século após ascensão de Hitler, neonazismo se espalha pelo Brasil
Antropóloga especialista em neonazismo fala a VEJA sobre crescimento do movimento no Brasil e no mundo -- e o que pode superá-lo
Há exatamente cem anos, Adolf Hitler tornava-se líder do Partido Nazista da Alemanha. Dezoito anos depois disso, eclodiria o maior combate militar já vivenciado pela humanidade: a Segunda Guerra Mundial.
VEJA conversou com Adriana Dias, doutora em antropologia social pela Universidade Estadual de Campinas, para entender o atual estado da propagação de ideais hitleristas pelo Brasil e pelo mundo. Na última quarta-feira, a especialista revelou ao Intercept Brasil a descoberta de uma carta de autoria do presidente Jair Bolsonaro publicada em sites neonazistas brasileiros em 2004 — notícia que, segundo ela, teria causado muito mais comoção se tivesse sido divulgada em qualquer outro lugar do planeta.
O movimento neonazista teve início logo após o final da Segunda Guerra Mundial, encontrando especial sucesso na Alemanha, no leste europeu e nos Estados Unidos. A atividade desses grupos ganhou força nos anos 1960, quando a luta por direitos civis se intensificou pelo mundo. O próximo boom do movimento veio duas décadas depois, com o desenvolvimento da ideia de que grupos neonazistas poderiam destruir o então governo norte-americano e substituí-lo por um Estado branco.
“No Brasil, o neonazismo não foi gigantesco, embora tenha sido muito profícuo em alguns lugares, como Petrópolis e Blumenau”, explica Adriana Dias. Segundo a antropóloga, mesmo que o Partido Nazista brasileiro tenha sido proibido por lei, isso não significa que seus adeptos imediatamente deixaram de acreditar em suas máximas. “A desnazificação é um processo lento, baseado na educação”, afirma.
Nessas regiões, a tradução de textos hitleristas do alemão, do espanhol e do inglês tornou-se comum há algumas décadas, com a mistura de alguns ideais de diferentes literaturas. Aos poucos, formaram-se os primeiros grupos neonazistas brasileiros.
“Quando comecei a pesquisar o tema, em 2002, encontrei células neonazistas muito pequenas, pontuais, ainda que cerca de 200 mil pessoas acessassem textos hitleristas no país”, conta Adriana. “Hoje, há 530 dessas células, que têm crescido desde então.”
No final dos anos 2000, relata a antropóloga, algumas dessas células haviam perdido seus líderes e ficaram submersas, distanciando-se e até desmontando-se. A partir de 2011, contudo, Jair Bolsonaro começava a aparecer no cenário político nacional, e a parte discriminatória de seus discursos provou-se suficientemente forte para fazer alguns grupos neonazistas se manifestarem pública e socialmente de modo violento.
“Percebemos que as falas de Bolsonaro ecoavam de forma agressiva em neonazistas, fazendo com que as células chamassem a atenção de mais pessoas e crescessem”, explica Adriana Dias. “Por isso, temos hoje um quadro preocupante no Brasil.”
Para a especialista, o recente crescimento de ideais hitleristas pelo planeta é resultado de problemas mal resolvidos do século XX. “Por enquanto, estamos muito semelhantes à década de 1920, com a popularização de movimentos totalitários que usam o medo do comunismo como ferramenta para assustar a população”, diz. De acordo com ela, esses grupos neonazistas estão reaparecendo porque não lidamos totalmente com as questões do racismo, do capacitismo, do machismo e da homofobia, que permanecem polêmicas.
“Enquanto nós, como elementos de uma sociedade que se diz civilizada, continuarmos hierarquizando seres humanos — homens acima de mulheres, brancos acima de negros, heterossexuais acima de LGBTs –, essa questão não será resolvida.”