Trincheiras do crime: como as barricadas se expandem e se sofisticam no Rio
Tática de guerra, elas funcionam sob o comando de quadrilhas que assim controlam o ir e vir em vastos territórios
Ao longo dos tempos, as barricadas serviram de defesa nos mais sangrentos confrontos, ganhando vigor em momentos de profunda ebulição, como na Revolução Francesa, no fim do século XVIII, quando os insurgentes arrancavam paralelepípedos das vielas e faziam deles montanhas para conter as tropas do rei. Na Primeira Guerra, elas voltaram com tudo às cenas de combate, sobretudo para proteger fronteiras. E, de conflito em conflito, acabaram se tornando nos dias atuais, sob a moldura do crime organizado no Rio de Janeiro, o símbolo de uma aberração que não só insiste em manchar a paisagem, como se espalha: as barreiras são erguidas e monitoradas por bandidos que as põem de pé como um explícito mecanismo de controle de territórios nos quais mandam e desmandam, à margem do poder público. Pelo filtro das gangues, só passa quem elas autorizam.
O fenômeno escalou a um ponto tal que, segundo a Secretaria de Segurança, já são mais de 5 000 dessas trincheiras fincadas por todo o estado. Enquanto sua inaceitável presença sobe ano a ano e os relatos sobre sua existência triplicaram em 2024, de acordo com um recente levantamento do Disque-Denúncia, elas passaram, de modo absurdo, a constar até em aplicativos de geolocalização, como Google Maps e Waze. As imagens são postadas por cidadãos de bem que esbarram com os paredões cada vez mais sofisticados do crime em favelas e outras áreas que têm traficantes e milicianos como senhores do pedaço. Antes improvisadas com montes de lixo, troncos de madeira e caçambas, hoje se valem de cancelas com controle remoto e muros de alvenaria onde se avistam seteiras, aqueles pequenos orifícios feitos sob medida para o encaixe de um fuzil, tal qual em embates militares. “Essas barreiras são a face mais visível do controle econômico, político e social dos grupos armados”, diz o sociólogo Daniel Hirata.
Não é preciso procurar muito para achar os obstáculos da bandidagem. Em apenas meia hora, a reportagem de VEJA contabilizou mais de trinta na Zona Norte, próximos a pontos que povoam o noticiário nacional pela elevada violência que rege seu cotidiano, como os complexos da Maré e do Alemão. Especial audácia se revela num trecho de 500 metros ao longo de uma das principais vias do subúrbio da cidade — ali, na Rua Leopoldo Bulhões, há dez barreiras, uma após a outra, onde não raro o carro é parado por marginais armados. O objetivo maior é impedir o acesso da polícia e de bandos rivais. “As barricadas são a materialização da ausência do Estado. Há um simbolismo nas ações de desmonte dessas estruturas. Além de dar um recado aos criminosos, restituímos a circulação”, disse a VEJA o secretário Victor Cesar dos Santos, no comando da pasta da Segurança, que trata o assunto como prioridade. É um jogo de gato e rato — um dia a trincheira é retirada, no outro brota logo ao lado — que já dragou mais de 10 milhões de reais do caixa estadual em investimentos como os “kits de remoção”, que incluem retroescavadeiras e caminhões.
Na ausência de uma aba para sinalizar os bloqueios nos apps, eles costumam aparecer nas categorias “marco histórico” ou “cultural” — nada a ver com o que efetivamente são. “As contribuições dos usuários ajudam as pessoas a tomarem decisões com mais confiança sobre onde ir e o que fazer em um mundo em constante mudança”, declarou o Google em nota a VEJA. Na pressa do dia a dia, uma multidão desavisada se pega enredada pela brutalidade embutida nessas barreiras. “Outro dia, fui buscar um passageiro e passei por três delas, duas com bandidos munidos de pistolas e fuzis”, conta um motorista de aplicativo que vive em tensão. Para quem mora em regiões sob o jugo de quadrilhas, a rotina de controle de entrada e saída é também intimidadora. “Colocaram uma cancela na minha rua e a gente só podia atravessar de carro entre 8h e 20h. Depois, fecharam uma área maior, e não há a quem reclamar”, relata uma comerciante que, em obediência aos horários do crime, não consegue mais receber visitas em casa à noite.
A sensação de impunidade acaba por estimular novas estratégias para frear os agentes, como se viu não faz muito tempo em Vigário Geral, favela que integra um naco do Rio onde o crime ascende: o Complexo de Israel, movido por uma assustadora combinação de terror com intolerância religiosa. Durante uma operação por lá, um blindado da Polícia Civil caiu em uma vala profunda, um outro gênero de barreira empregado naquelas bandas. Investigações apontam que essa prática, tão cultivada por facções fluminenses, começa a ser exportada para outros estados, já tendo sido flagrada em Santa Catarina e em cidades nordestinas, plantada por um bando conhecido como Novo Cangaço. Mas nada se compara ao Rio de Janeiro. “Os criminosos têm se tornado mais sofisticados em sua tática de domínio territorial, afetando o acesso a serviços básicos. É uma afronta aos direitos fundamentais”, alerta o promotor Fábio Corrêa, do Ministério Público estadual. Insuflados pela histórica inépcia, quando não conivência, das autoridades, o que os bandidos ceifam é o mais essencial dos direitos — a liberdade de ir e vir.
Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2024, edição nº 2920