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‘Só pensava em salvar pessoas’: o pescador que resgatou 120 famílias na BA

Jean de Oliveira, 48, conta como retirou centenas de pessoas das águas que inundaram o estado com uma fúria sem precedente

Por Duda Monteiro de Barros Atualizado em 4 jun 2024, 12h26 - Publicado em 8 jan 2022, 08h00
Jean de Oliveira -
Jean de Oliveira – (Guthierry Andrade/VEJA)

O tempo estava fechado, começou a cair uma chuva fina e voltei para casa naquele sábado, depois de pescar, sem ter ideia de que o curso da minha vida estava prestes a mudar. De repente, veio a fúria da água, que logo alcançou uns 30 centímetros, e só subia. Minha rua, em Itabuna, alagou. E vi que a coisa estava ficando feia, com pessoas desesperadas sem saber o que fazer. Como bons pescadores que somos, meu irmão e eu resolvemos pegar nossa jangada para ajudar como desse os moradores desnorteados. As crianças e os mais velhos não conseguiam atravessar a rua e lá íamos nós, embarcando todos para que completassem o que virou uma travessia. Cheguei a brincar dizendo que havíamos nos tornado um Uber aquático. O nível da água se elevava em uma velocidade assombrosa e inédita. Nunca tinha visto nada parecido. Anoiteceu e, com a gravidade da situação, comecei a retirar o que podia da casa dos vizinhos, com medo de que tudo aquilo que construíram com tanto suor fosse sugado pela enchente.

Ouviam-se gritos de socorro vindos de todos os lados, e a água já ultrapassava os 3 metros quando os bombeiros enfim chegaram. Houve um alívio geral, mas durou pouco. O barco deles quebrou. Foi aí que não tive dúvida e pensei: “Preciso salvar as pessoas, salvar vidas, o maior número que conseguir”. Me marcou profundamente ter resgatado um bebê recém-nascido do 2º andar de um prédio, a bordo da jangada. A mãe me olhava ansiosa, com uma aflição terrível, implorando para que desse tudo certo. Deu. Fiz incontáveis viagens de jangada, cercando toda a área. Estava com dois homens e um cachorro a bordo quando atravessamos uma correnteza muito forte, o cão tentou pular, a embarcação sacudiu e caímos no mar. Consegui frear a jangada com uma corda, todo mundo voltou e seguimos nossa rota em busca da sobrevivência. Salvei ao todo 120 famílias, algumas com a água cobrindo a casa, muita gente quase se afogando. Meus próprios parentes também precisaram ser resgatados. Ia levando as pessoas para um abrigo seguro e me enchi de alegria ao ver aquele povo todo vivo, com saúde, depois da tempestade que matou duas dezenas na Bahia.

Quando você está em uma missão assim, não tem tempo de pensar em mais nada, só agir. Virei a noite naquela jangada, indo e vindo, sem parar. Depois que a coisa acalmou, no dia seguinte, finalmente retornei para casa e me dei conta de que ela havia desabado. Perdi tudo o que eu tinha. É claro que dói, e dói muito, ver décadas de trabalho ir embora, o que eu comprei com tanto esforço e dificuldade. Mas estou vivo e tenho valorizado isso como nunca. Descobri na tragédia um sentimento de solidariedade que, acredito, deve ser cultivado por todos nós. Sem ele, o estrago poderia ter sido muito pior. Também vejo a solidariedade, felizmente, germinar neste momento por todos os cantos do país, de onde chegam ajuda privada a famílias que hoje não têm mais nada, inclusive a minha.

O que mais quero é conseguir construir uma casa para morar com minha mulher e meu filhinho de 5 anos. Por enquanto, estou na do meu irmão, que foi menos afetada. Mesmo com tantos obstáculos, mantenho a esperança sempre acesa. Sei que perdi muito, mas não posso dizer que não ganhei ao salvar toda aquela gente. Ganhei, sim. Me emociona o carinho que recebo das pessoas da comunidade, a maioria atualmente em igrejas e abrigos que podem acolhê-­las. Às vezes, falam: “Olha o herói”. Herói, que nada. Sou só um voluntário, mais um, e que bom que fui útil. Faria tudo de novo, sem pestanejar. Agora é trabalhar duro para pôr tudo de pé de novo e recomeçar a vida do zero.

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Jean de Oliveira em depoimento dado a Duda Monteiro de Barros

Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2022, edição nº 2771

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