“Só o Brasil geraria um Rondon”
Para biógrafo, miscigenação do país e o fato de o marechal ser produto de cultura europeia, cultura africana e cultura indígena não têm precedente no mundo

A seguir, a entrevista de Larry Rohter a VEJA, concedida no Centro Cullman, sede da biblioteca de Nova York. Rohter vive em Hoboken, em Nova Jersey, berço de Frank Sinatra.
Por que, segundo a definição do senhor, Cândido Rondon é a figura central na transição do império não unificado, como um Estado sem coesão, para uma república moderna? Quando falo do papel de Rondon na construção do Brasil, uso a palavra em dois sentidos — a construção de estradas, pontes, da linha telegráfica e também a construção de instituições e valores que ainda hoje permeiam a essência do Estado brasileiro, principalmente o antigo Serviço de Proteção aos Índios. A visão rondoniana da questão indígena, ao menos até o governo atual, não foi contestada.
Como a filosofia indigenista de Rondon permanece viva? Primeiro, no lema “Morrer se for preciso, matar, nunca”, que é defendido ainda hoje pelos grandes sertanistas brasileiros. Vejo também relevância na filosofia de deixar o próprio indígena escolher seu rumo como povo. Se ele quer se integrar, a sociedade brasileira deve abrir os braços. Se quer manter distância, é direito dele. E as fases intermediárias são possíveis: contato limitado, tutela. Acho que a livre escolha seria a contribuição indigenista mais relevante de Rondon nos dias atuais.
Os Estados Unidos poderiam ter produzido um Rondon? Tenho pensado muito nisso porque preciso explicar ao leitor americano quem era Rondon. Na versão em inglês, falo dele usando figuras do imaginário dos Estados Unidos — exploradores, homens de fronteira, ambientalistas —, todas misturadas num só homem. Não acredito que outro país possa produzir um Rondon. Só o Brasil poderia gerá-lo. Para mim, a miscigenação brasileira e o fato de Rondon ser produto de cultura europeia, cultura africana e cultura indígena não têm precedente no mundo. Por isso foi difícil, no início do século XX, para a Real Sociedade Geográfica de Londres, que dominava o campo etnográfico, engolir alguém que era ao mesmo tempo explorador, grande intelectual e íntimo da cultura indígena.
Depois de tantas décadas no Brasil, como o mergulho na pesquisa do livro afetou sua compreensão dos brasileiros? De modo geral, a pesquisa confirmou minha visão do Brasil. No terreno político, a dificuldade de criar partidos com base ideológica, e não com base no personalismo. Isso se vê como desafio já ao longo da Primeira República e afetou todos os presidentes da época. No aspecto cultural, saí mais convencido ainda da minha visão do Brasil como uma cultura mestiça. É certo que essa mistura arrasta desigualdades, exploração. Mas a criação de uma cultura mestiça é uma grande façanha do Brasil. Rondon personifica esse processo. Foi criado numa vila, em contato cotidiano com escravos e indígenas. Ele sofreu o impacto das várias culturas que fazem parte dessa miscigenação chamada Brasil.
O senhor pesquisou documentos no Museu Nacional do Rio, incendiado em setembro do ano passado. Parte dessa iconografia foi destruída? Sim, infelizmente. Passei um mês lá, digitalizei cerca de 5 000 páginas de arquivos, muitos deles perdidos. Rondon foi o maior doador de espécies para o museu. Já estamos em contato e será um prazer devolver o acervo que pude copiar.
Há alguma ironia no fato de ter apresentado o projeto da biografia em 2014, num momento tão diferente da política brasileira? O livro foi ganhando corpo à medida que avançava a Operação Lava-Jato — e muitos amigos se mostraram progressivamente deprimidos. Parecia a eles que todos, na vida pública, eram corruptos ou incompetentes ou as duas coisas simultaneamente. Imaginei o livro como um presente para essas pessoas queridas. Para lembrá-las de que o Brasil já produziu um homem com qualidades extraordinárias. O país tem a capacidade de gerar personagens heroicos como Rondon, esse homem reto, incrivelmente abnegado e patriota, no melhor sentido da palavra.
Publicado em VEJA de 1º de maio de 2019, edição nº 2632

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