Sem direito ao esquecimento
Decisão da Suprema Corte impede que uma tese aparentemente nobre se torne uma ameaça à liberdade de expressão e de imprensa

Aída Curi era ingênua – na plena acepção da palavra. Ingênua a ponto de não perceber que estava sendo conduzida para uma cilada que lhe custaria a vida naquela tarde de 14 de julho de 1958 em Copacabana. Tendo passado a maior parte da juventude internada em um educandário, ela cometeu o erro de aceitar o convite do playboy Ronaldo Castro para ver a linda vista da praia do alto de uma cobertura. Sem que ela soubesse, dois sujeitos estavam à espreita no luxuoso apartamento: um menor de idade, amigo de Ronaldo, e o porteiro do prédio. Os três espancaram e violentaram a moça e, para impedir que ela viesse a dar queixa, a jogaram do 12° andar na calçada da avenida Atlântica. Talvez ela já estivesse morta quando chegou ao chão, mas, se não estava, a queda tratou de tirar o último suspiro de seu corpo.
O caso de Aída Curi teve repercussão nacional, principalmente porque o julgamento, como acontece recorrentemente no Brasil, derivou de tal forma a favor dos assassinos que, a certa altura, parecia que a jovem é que era a culpada pelo ocorrido. Ronaldo Castro pegou uma pena leve de prisão, o cúmplice menor de idade foi recolhido a uma instituição e o porteiro tratou de desaparecer antes de ser julgado em todas as instâncias cabíveis.
O nome de Aída, que teve a vida ceifada em tão tenra idade, voltaria às manchetes em 2004 e, uma vez mais, na quinta-feira passada: em ambos os casos, por um outro motivo que não o assassinato em si. Dezessete anos atrás, a TV Globo, em seu extinto programa Linha Direta − Justiça, reencenou o crime quase cinquenta anos depois de ele ter ocorrido e, por causa disso, foi processada pela família de Aída Curi sob o princípio de proteção do direito personalíssimo da vítima e o direito ao esquecimento. A emissora teria usado imagens da jovem sem autorização e, além disso, estaria trazendo sofrimento aos familiares ao reacender o interesse pelo caso.
Por 9 votos a 1 (o ministro Luís Roberto Barroso declarou-se impedido de votar), o Supremo Tribunal Federal deu ganho de causa à TV Globo e, ao fazer isso, criou uma jurisprudência que vai encerrar processos similares que pairam na Justiça e impedir que outros venham a atulhar ainda mais o sistema judiciário brasileiro. Na prática, o STF colocou freios no direito ao esquecimento, tese que abriria brecha até para que ex-condenados, tendo cumprido pena por seus crimes, exigissem silêncio da imprensa se ela tentasse revisitar casos passados. Mesmo links de notícias antigas na internet poderiam ser eventualmente bloqueados se o princípio prosperasse. O STF interpretou que o direito ao esquecimento é uma forma de censura e que, portanto, afronta a constituição. Assim sendo, se os fatos não forem distorcidos, a parte interessada ou os familiares desta não podem impedir a divulgação de acontecimentos amplamente noticiados. E, mesmo que esses fatos tenham sido deturpados de alguma forma, não cabe à Justiça proibir a veiculação deles, mas apenas julgar, à luz da lei, se a parte que se sente prejudicada merece reparação sob alegação de calúnia, injúria ou difamação.
A decisão do STF pode ter ajudado a desatar um nó jurídico que nem mesmo os europeus foram capazes de desfazer. Em 2014, a Comunidade Europeia aprovou uma lei que garante, pelo menos até certo ponto, o direito ao esquecimento. Talvez pelo fato de ter sido palco de duas guerras mundiais, do holocausto judeu e do holodomor ucraniano, além de uma série de atentados terroristas perpetrados até poucas décadas atrás por organizações como IRA (exército republicano irlandês) e ETA (grupo separatista basco), a Europa veja com mais reservas as revisitas a delicados eventos do passado. Acontece que a lei europeia de direito ao esquecimento apresenta tantas exceções – como a garantia da liberdade de imprensa – que, na prática, seu escopo de uso é bastante restrito.
Um caso específico ocorrido na Polônia há alguns dias chamou a atenção por envolver um processo contra dois historiadores que citam, em um livro sobre o holocausto, um cidadão que teria sido colaborador dos nazistas no extermínio de judeus poloneses na Segunda Guerra. Os autores foram obrigados a ressarcir os familiares da pessoa em questão sob a alegação de que ela foi difamada após a morte, pois nunca teria colaborado com os alemães. Analistas se dividem quanto à decisão da corte polonesa neste caso. Se por um lado os escritores poderiam estar sendo vítimas de censura, por outro a família teria o direito de proteger seu patriarca, cuja memória estaria sendo vilipendiada.
Seja como for, tanto no Brasil quanto na Europa, é fundamental que o direito ao esquecimento não seja usado indiscriminadamente como uma forma de cercear o direito de livre pensar e de livre se expressar, e muito menos como arma para atacar a liberdade de imprensa. O “direito ao esquecimento” parece uma bela expressão de três palavras. Porém, ela perde toda a beleza quando é manipulada para amarrar os meios de comunicação. Se o STF tivesse entendido de outra forma o caso julgado em plenário na última quinta, talvez o Brasil passasse a ter assassinos, estupradores e políticos corruptos exigindo o bloqueio de links na internet relacionados a crimes cometidos por eles no passado. E, às vezes, em um passado nem tão distante.