Rio das Pedras: como atua e quem manda na milícia mais poderosa do país
Trazida aos holofotes após a chacina que ceifou a vida de médicos no Rio, ela é um contundente exemplo de um mal que precisa ser vencido
Em paralelo ao boom imobiliário no fim dos anos 1970 na Barra da Tijuca, bairro de renda elevada na Zona Oeste carioca, uma imensa área a poucos quilômetros dali viu surgir barracos em série. Ocupada por imigrantes nordestinos que aportavam na região para trabalhar nas obras em andamento, a comunidade de Rio das Pedras foi se espalhando de forma desordenada e sempre à margem da lei. Quem dava as cartas nesta porção do Rio de Janeiro eram líderes locais que impunham sua cartilha e agiam como benfeitores, punindo à base de barbárie crimes praticados por outros no pedaço sob seu comando. A essa célula ainda pequena, que com o tempo passou a explorar toda sorte de ilegalidades — transporte clandestino, “gatos” na fiação, agiotagem e até mortes sob encomenda —, se juntou uma banda corrupta de policiais, bombeiros e guardas municipais que, desde o nascedouro, se valeu do terror para reinar. E assim a milícia de Rio das Pedras, uma excrescência como muitas mais que fincaram bandeira no Rio, ganhou envergadura, tornando-se a mais poderosa do país.
Vira e mexe, a bandidagem alojada ao lado da Barra vem aos holofotes nacionais pela maneira como desdenha das vias legais e pela carnificina que produz. Nos últimos dias, ela ficou exposta depois da chacina que tomou a população de espanto. O fuzilamento de quatro médicos de outros estados que papeavam às vésperas de um congresso num quiosque à beira-mar teve como pano de fundo justamente a disputa dos profícuos negócios tocados nesse quinhão da cidade. A facção autodenominada Comando Vermelho (CV), que nas idas e vindas da criminalidade vem se associando a milícias, trava uma guerra por território com Rio das Pedras. Foram membros do CV que dispararam 33 vezes contra o quarteto de médicos, acreditando que entre eles estaria Taillon Barbosa, 26 anos, hoje o chefão de Rio das Pedras. Parecido fisicamente com ele, o ortopedista Perseu de Almeida, 33 anos, perdeu a vida, assim como outros dois dos colegas. Um deles salvou-se, ferido.
VEJA teve acesso a uma denúncia do Ministério Público do Rio que fornece detalhes sobre o bandido que atualmente governa Rio das Pedras e dá horripilantes contornos do modus operandi do bando. Taillon não mora na comunidade que mantém com mãos de ferro nem tampouco na vizinha Muzema, sob o poderio de seu grupo. Ele reside em um condomínio a 750 metros do quiosque onde ocorreu a chacina. O inquérito o descreve como alguém de comportamento “extremamente violento”, que anda armado e agride moradores. Depois de dois anos de prisão, ele obteve liberdade condicional no mês passado e retomou o comando da comunidade que herdou do pai, o ex-PM Dalmir Barbosa, ainda encarcerado. O montante mensal que a engrenagem de lá faz girar está em 2 milhões de reais, e subindo.
Os documentos do MP lançam também luz sobre o ex-capitão do Bope Adriano Magalhães da Nóbrega, morto em 2020 pela polícia, que controlava a milícia em parceria com Dalmir. Adriano se tornou figura emblemática das garras dessa força paralela sobre a política — ele instalou a mãe e a ex-mulher no rol de funcionários do gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro (PL), que até o homenageou na Assembleia Legislativa. O ex-capitão se revezava entre a milícia e o Escritório do Crime, bando de matadores de aluguel que fez fama pela perícia e crueldade dos assassinatos que executou. No período em que esteve à frente de Rio das Pedras, Adriano cobrava taxas de moradores e comerciantes por suposta proteção e fornecimento de serviços na ilegalidade. O tal imposto chegava a 1 000 reais por mês. “A ascensão de Rio das Pedras se explica por sua posição estratégica, ao lado da Barra e situada em local adensado e repleto de comércio, o que potencializa os lucros”, diz o antropólogo Paulo Storani.
Com tática semelhante, o conjunto de milícias do Rio já supera o tráfico em extensão territorial. De acordo com um levantamento do Grupo de Estudos em Novos Ilegalismos da UFF, junto com o Instituto Fogo Cruzado, esses bandidos dominam 284,3 quilômetros quadrados da região metropolitana, cravando um impressionante avanço de 428% em pouco mais de uma década. Na capital, um de cada três cariocas vive em bairros com alguma atuação dessas organizações, que foram por longo período vistas como salvadoras de populações pobres sob o domínio de traficantes — um mal menor e necessário, repetia-se, equivocadamente. “Uma parcela de seu crescimento se deve à maior tolerância, inclusive das autoridades, com esse tipo de criminalidade em relação ao tráfico de drogas”, diz o sociólogo Daniel Hirata, da UFF. O modelo de negócios implantado pelas milícias, que se espraiam por cada vez mais setores, entre eles o imobiliário, tende a ser mais lucrativo e menos visado do que o comércio de drogas.
A associação entre milícia e tráfico é um degrau a mais na cadeia evolutiva das quadrilhas de paramilitares, algo nos moldes das maras mexicanas. As chamadas narcomilícias ingressaram com mais vigor no cotidiano do crime de dois anos para cá, após a morte de Wellington da Silva Braga, o Ecko, àquela altura o miliciano mais procurado do Rio. Depois dele, deu-se uma fragmentação da quadrilha e novos arranjos se firmaram. “A milícia vem sendo descaracterizada e se confundindo com o tráfico. Não é incomum que ambos compartilhem ações criminosas”, afirma André Neves, diretor do Departamento-Geral de Polícia Especializada da capital. Rio das Pedras é justamente alvo de uma união dessa natureza — a milícia de Gardênia Azul, não muito longe dali, e o CV, incrustado na Cidade de Deus, selaram aliança, e daí veio a trama para eliminar o chefe Taillon.
Não apenas os números superlativos, produto de cada vez mais organização, põem Rio das Pedras no mapa nacional. Nomes ligados a casos de elevada repercussão têm os pés fincados por lá. Acusado pelos disparos contra a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes, em 2018, o policial reformado Ronnie Lessa, que já foi dono de uma academia no miolo da favela, hoje preso, é suspeito de ter ocupado alto posto na hierarquia da milícia. Já o PM da reserva Fabrício Queiroz, que era amigão do clã Bolsonaro e foi apontado como o operador do suposto esquema de desvios da rachadinha no gabinete do deputado Flávio, atuou com Adriano lado a lado no batalhão da região.
A presença dessas células criminosas tem reflexos no funcionamento da cidade, já que elas se enfronham nas mais diversas esferas, extrapolando suas fronteiras. “Esses grupos armados controlam absolutamente todas as camadas da vida local, na economia, na política, na cultura e na religião”, diz o sociólogo José Cláudio Souza Alves, da UFRRJ. Em pronunciamento depois da execução dos médicos na Barra, o governador do Rio, Cláudio Castro (PL), se referiu às milícias como “verdadeiras máfias” que causam prejuízos ao sistema financeiro — um mal que nem ele nem qualquer outro governante conseguiram até agora extirpar. A atuação deletéria dessas gangues se faz sentir, de modo evidente, como a clareza do sol, no fornecimento de luz no estado. Esse ano, a Light, responsável pela distribuição de energia em mais de trinta municípios, em processo de reestruturação financeira, atribuiu parte de sua dívida de 11 bilhões de reais aos “gatos” em localidades sob o jugo dos criminosos.
Com tamanho poder sobre tão vastas áreas, as milícias também se converteram em potentes cabos eleitorais. Em vários pontos do Rio, só é permitida a entrada de candidatos avalizados pelo crime. Um levantamento do Tribunal Regional Eleitoral aponta que, para fazer campanha nos domínios dessas quadrilhas, um político desembolsa até 100 reais por morador, uma violência à democracia. Desde a CPI das Milícias, conduzida na Alerj em 2008, verificou-se que a estratégia desses bandos mudou — se naquela época foram presos milicianos que compunham o Legislativo, atualmente a estratégia, mais discreta e eficaz, é prover apoio a nomes que lhes são simpáticos.
Estima-se que 77 das 97 zonas eleitorais do Grande Rio seguem nas mãos do poder paralelo, 4,6 milhões de eleitores. No pleito de 2022, VEJA fez uma incursão a Rio das Pedras e avistou ali apenas material eleitoral de parentes do conselheiro do Tribunal de Contas do Estado Domingos Brazão, suspeito de ligação com o caso Marielle Franco e com a milícia — o que ele sempre negou. Não é mais nas sombras, mas à luz do dia e com a leniência de autoridades variadas, que esses marginais vêm se alastrando. Enquanto isso, inocentes, como os médicos que davam uma trégua ao trabalho na Barra, têm suas vidas ceifadas.
Publicado em VEJA de 13 de outubro de 2023, edição nº 2863