Realização em dose dupla
Gustavo Catunda, 29, e o marido foram os primeiros no país a ter bebês com óvulo doado por uma parente
Conheci meu marido na faculdade de engenharia, em Brasília. Um ano depois, em 2011, engatamos um relacionamento sério, após vários namoros de ambas as partes com mulheres. Eu tinha 19 anos e, já naquela época, cultivava o plano de ter filhos mais adiante. Para homossexuais, porém, formar uma família ainda não é visto com tanta naturalidade, mesmo que o mundo tenha evoluído e vários casais gays sejam hoje pais ou mães no Brasil. Meus próprios parentes acharam estranho. Mas seguimos em frente, enfrentando em primeiro lugar o desafio prático que se coloca em casos como o nosso: que caminho seguir para chegar lá? Uma opção era a adoção e a outra, barriga de aluguel. Pois a jornada acabou sendo bem diferente do que havíamos imaginado e, há três meses, minha vida foi completamente transformada por Marc e Maya, concebidos de forma inédita no Brasil.
No fim de 2020, conversei com uma prima sobre a possibilidade de ela carregar o nosso bebê em sua barriga. Ela se emocionou e concordou na hora, muito mais rápido do que esperávamos. O passo seguinte foi ir atrás de um banco internacional de óvulos, trilha percorrida por muitos brasileiros na mesma situação. Em junho de 2021, eu estava prestes a fazer uma viagem quando chegou o contrato da compra dos óvulos, que decidi assinar na volta, com calma. E eis que, enquanto aguardava o voo para casa, recebi uma mensagem da minha advogada dizendo que uma nova resolução brasileira havia mudado as regras do jogo. A partir dali, seria permitido o uso de óvulos de parentes próximos, como já ocorre há anos em países como os Estados Unidos. Me comoveu demais a ideia de ter um filho com material genético de alguém da minha própria família. E essa pessoa foi minha irmã.
A nossa história, além do ineditismo, tem um enredo curioso: minha irmã, embora tenha adorado a ideia, não estava preparada para engravidar aos 21 anos. Aí veio a solução. Os óvulos seriam dela, os espermatozoides de Robert, meu marido, e a criança seria gestada por minha prima, que nos apoiou desde o início. E assim, num lance de sorte, em vinte dias recebemos o teste positivo. Minha prima estava grávida, um processo prazeroso que acompanhamos no dia a dia. Não foi fácil. Houve momentos em que sofremos com a desconfiança de pessoas em nosso entorno. Elas estranhavam e punham em dúvida se teríamos direito ao bebê. Até no sistema de saúde esbarramos com profissionais despreparados para lidar com o caso. Sentimos na pele como é difícil digerir uma ideia ainda nova. Íamos com minha prima às consultas e só queriam deixar que um de nós entrasse na sala — e tinha de ser o pai. Felizmente, isso foi mudando ao longo dos meses. Em um dos exames, descobrimos que seríamos pais de gêmeos, um menino e uma menina.
No dia do parto, o nervoso tomou conta de todos, tamanha a expectativa envolvida. Marc e Maya nasceram prematuros, com 35 semanas. Marc estava quase morto e precisou de três massagens cardíacas até ser reanimado. Foram aqueles poucos segundos que, para mim, pareceram horas infindáveis. Agora, os dois estão ótimos, assim como eu, imerso nessa aventura que é a paternidade, com a qual sempre sonhei. A gente não dorme, não come, mal consegue respirar, mas a intensidade da experiência compensa tudo. É emoção que não acaba. No passado recente, um arranjo como esse era raro e quase não se tocava no assunto, um tabu. Mas o mundo segue girando, ainda bem. Que a nossa história ajude mais gente a romper as portas do preconceito.
Gustavo Catunda em depoimento dado a Duda Monteiro de Barros
Publicado em VEJA de 11 de maio de 2022, edição nº 2788