Por dentro da maior fazenda de cannabis do Brasil
Margarete Brito, pioneira no direito de cultivar maconha medicinal no Brasil, coordena o cultivo de 37 hectares que garante tratamento a 7.500 pacientes
Com pouco mais de um mês de vida, Sofia teve as primeiras crises epilépticas de um longo histórico de convulsões que viria pela frente. Foram feitas diversas provas, estudos e análises até ela ser diagnosticada, aos dois anos e meio, portadora de uma deficiência do gene CDKL5, uma síndrome rara que compromete gravemente o desenvolvimento intelectual, da fala e dos movimentos. Depois de lançar mão de todas as possibilidades farmacológicas disponíveis para melhorar sua qualidade de vida, e até de uma cirurgia, Margarete Brito e Marcos Langenbach, pais da menina, descobriram que uma criança com uma condição parecida à de Sofia se tratava com cannabis nos EUA apresentava ótimos resultados.
Há exatos dez anos, Margarete e Marcos se arriscavam importando ilegalmente o óleo de maconha como última esperança pela melhora de Sofia. Eles corriam o risco de ser presos, acusados de tráfico internacional de drogas, mas essa ameaça perdeu importância quando testemunharam a diminuição no número de crises epilépticas da filha, de três por dia para duas por semana. O apetite, o sono, e o quadro geral da menina também melhoraram consideravelmente. Outros pais e mães procuraram a ajuda do casal para tratar dos filhos com quadros parecidos aos de Sofia. “Casos de 60, 80 convulsões por semana que com a cannabis zeraram essas crises”, conta Margarete. Da forma mais natural e orgânica possível nasceu a Apepi (Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal), a mais importante associação de pacientes do país que atende, hoje, a 7.500 pacientes associados.
Naquele então, importar o óleo à base de cannabis era (ainda mais) caro, burocrático e demorado do que é hoje, por isso Marcos e Margarete lutaram e, em 2016, conquistaram na Justiça um habeas corpus de cultivo, o primeiro do Brasil garantindo o direito de plantar maconha para fins medicinais. Cinco anos depois, em 2021, o cenário mudou bastante. O cultivo do apartamento de 70 metros quadrados migrou para uma área de 37 hectares, e a preparação dos remédios, antes feita na cozinha, passou a acontecer em um laboratório moderno e equipado com todo o necessário para garantir formulações de qualidade que são hoje exemplo e referência para as mais de 100 associações de pacientes de cannabis de norte a sul do país que sonham seguir os passos da Apepi.
A maior fazenda de cannabis do Brasil é a sede campestre da Apepi, e está localizada numa região isolada de Paty do Alferes, no Rio de Janeiro. Rodeada de verde, no alto de uma colina sem vizinhos por perto, é o lugar perfeito para a instalação de um cultivo gigante, com 4.000 plantas de cannabis crescendo ao mesmo tempo, em diferentes estágios de floração. Quem vê a fazenda funcionando de vento em popa, produzindo 200 quilos de flores que são transformadas em 4.000 frascos de remédio de maconha por mês, não imagina os desafios. Encontrar um local que fosse suficientemente seguro já não era das tarefas mais fáceis, mas convencer proprietários de que suas terras seriam destinadas ao cultivo de maconha foi o mais complicado. Não tinha jeito, mas Margarete deu um jeito. Ela criou uma página para o financiamento coletivo daquele sonho e pôde comprar a fazenda batizada de Sofia Langenbach.
O processo de fabricação dos óleos de maconha é profissional de ponta a ponta, do início da vida da planta até o laboratório de testagem na Unicamp. Farmacêutica, químicos e agrônomos cuidam do passo a passo para garantir que os produtos de cannabis sejam de alta qualidade, sem perder em nada para produtos importados ou disponíveis na farmácia através das RDCs 660 e 327, que são as vias de acesso à cannabis medicinal hoje no Brasil. A Apepi tem atualmente 70 funcionários distribuídos entre os cuidados com o cultivo, a produção, testagem e envio dos medicamentos, além do acolhimento dos pacientes, onde são feitos os primeiros atendimentos quando uma pessoa chega até a ONG. No momento, a associação busca na Justiça autorização definitiva da sentença que permitiu o plantio e também pesquisa, manipulação e distribuição de medicamentos de cannabis para pacientes associados com receita médica e exclusivamente para fins terapêuticos.
Cultivar cannabis no Brasil é um privilégio de poucas instituições no país. Além da Apepi, pouquíssimas associações de pacientes, como a Cultive, a Salvar e o CBFC (Club Brasileiro de Fitoterapia Cannábica) conquistaram esse direito na justiça. Pouquíssimas universidades como a UFSJ (cultivo de canabinoides in vitro para pesquisas), a UFSC (para pesquisa veterinária) e a UFRN, que no ano passado foi autorizada a cultivar para realizar estudos pré-clínicos com animais. Enquanto às empresas, apenas a startup de biotecnologia Adwa tem autorização concedida para o cultivo da planta. Em março deste ano, o STJ chamou para si a prerrogativa de decidir sobre o cultivo de cannabis no Brasil, quando provocado por uma empresa que pretende cultivar a planta para fins industriais e medicinais. A decisão será vinculante para todas as demais ações que correm sob o mesmo tema, como mostrou reportagem de capa da edição desta semana de VEJA.
A postura do Judiciário, por meio do STF e do STJ ocorre em resposta à omissão do Legislativo em debater e legislar sobre o tema, como o pretendido no PL 399/15, que desde 2015 propõe uma regulação ampla para os usos medicinal e industrial da cannabis no Brasil. Parado na Câmara, há mais de um ano, espera, sem previsão, para ser pautado pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), para ir a plenário.
Para José Bacellar, fundador e CEO da farmacêutica VerdeMed, uma das pioneiras da indústria canábica do país, certamente a decisão do STF que ao que tudo indica, será a favor da descriminalização, colocará para a sociedade brasileira, em particular o Poder Legislativo, o desafio de criar uma regulamentação positiva sobre a cannabis no Brasil. “Acredito que a votação do PL 399/2015 voltará a pauta do Congresso”, diz ele, que lembra, ainda, que a aprovação desse projeto abre as portas para um mercado potencial de 4,7 bilhões de reais — considerando as aplicações do cânhamo industrial, o uso medicinal da planta e as indicações farmacêuticas dela.
Se por aqui o tema parece não ser prioridade, nos EUA, só no ano passado, foram gastos mais de 30 bilhões de dólares em vendas legais de maconha. Na Europa, vários países já lucram com os usos medicinal e industrial, e a Alemanha está em vias de liberar inclusive o consumo recreativo, para onde todos os esforços dos ministérios da Saúde e da Segurança estão voltados agora mesmo.
E não é preciso nem ir tão longe. Nossos vizinhos de América Latina estão quase todos mais adiantados do que o Brasil nessa questão. Só para citar alguns, a Argentina pretende gerar 10 mil novos empregos, faturar 500 milhões de dólares em vendas domésticas e 50 milhões de dólares em exportações por ano. O Paraguai já é destaque entre os exportadores de subprodutos de cânhamo do mundo.