Polêmica da taxação de importados revela danos das trombadas no governo
O caso mostra como o populismo continua dividindo a gestão Lula e interferindo em decisões que deveriam ser técnicas
Com a polarização cristalizada no país, quase todo debate de projetos e medidas oficiais se transforma em disputa entre Lula e Jair Bolsonaro. O caso da taxação de compras de até 50 dólares em sites estrangeiros não foge à regra. Com problemas de popularidade, o presidente da República ignorou as recomendações da equipe econômica e disse que deveria vetar a cobrança de tributo nessas transações, para não punir a parcela da população com menor poder aquisitivo. Já o seu antecessor e principal adversário político se lançou numa cruzada a favor da manutenção da isenção, sob o argumento de que a gestão atual “é só mão no bolso do contribuinte”, como declarou seu filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). Numa tentativa de ganhar a batalha na opinião pública, Lula e Bolsonaro recorreram a discursos de fácil entendimento, mas negligenciaram as questões técnicas, que deveriam prevalecer no caso. Ambos, de certa forma, acabaram derrotados em votação na Câmara. O prejuízo político foi maior para o petista, que viu aliados baterem cabeça sobre o tema, numa série de trombadas para a qual contribuiu, como de costume, a falta de uma posição clara do governo.
A ideia de taxar compras em sites como Shopee e Shein foi lançada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, no início do ano passado. Seria uma forma de combater a sonegação fiscal, inibir fraudes diversas e garantir competitividade à indústria nacional frente aos exportadores asiáticos. Tão logo revelado, o plano foi criticado por bolsonaristas e usado para desgastar Lula. A repercussão foi enorme e negativa para o presidente. Numa tentativa de conter a sangria, a primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, chegou a publicar numa rede social uma informação errada, dizendo que a taxação, se implantada, não seria arcada por quem compra o produto. Diante da confusão, Haddad foi obrigado a engavetar a proposta, que ficaria em banho-maria não fosse a pressão dos fabricantes brasileiros. Entidades como a Confederação Nacionais da Indústria (CNI) e a do Comércio (CNC), além da Frente Parlamentar do Empreendedorismo, passaram a cobrar dos congressistas a aprovação da taxação. O lobby surtiu efeito, e a iniciativa foi incluída no meio de um projeto de lei apresentado pelo governo que estimula a descarbonização no setor automotivo. Tudo com o apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
Ciente da movimentação, Lula até pregou contra a criação do tributo dias antes da votação do projeto pelos deputados. O presidente alegou que não era justo a classe média desfrutar de isenção em compras em free shops no exterior enquanto “pessoas pobres, meninas e moças que querem comprar uma bugiganga, um negócio de cabelo” seriam obrigadas a pagar a nova taxa. Já Haddad, cujas cruzadas solitárias são conhecidas, discursou em sentido contrário, defendeu a taxação e acusou o governo Bolsonaro de transformar o contrabando em política de Estado: “O contrabando foi oficializado no Brasil, e as coisas tomaram essa proporção. Agora, o Congresso está tomando para si a tarefa de mediar”. Entre os discursos de Lula e Bolsonaro, os deputados ficaram com a posição da indústria nacional e, sob a batuta de Lira, aprovaram uma taxação de 20% nas compras de até 50 dólares em sites estrangeiros. Foi uma espécie de meio-termo, já que a Fazenda e representantes nacionais queriam uma alíquota maior, de até 60%. “Todos os partidos entenderam que a taxação de 20% daria um equilíbrio para manter o emprego de milhares de pessoas”, declarou Lira. “Foi o acordo possível para o momento.”
A votação, que conseguiu a proeza de desagradar todas as partes interessadas, ocorreu de forma simbólica, que é adotada quando há consenso e os partidos não querem externar publicamente os seus posicionamentos a respeito de um tema. Ciente do potencial político do caso, Bolsonaro até tentou convencer a legenda dele, o PL, detentora da maior bancada da Casa, a rejeitar a medida. Em vão. Na reunião da bancada , o líder da sigla, deputado Altineu Côrtes (RJ), leu uma mensagem que o empresário bolsonarista Luciano Hang, dono da rede Havan, encaminhou ao próprio ex-presidente para defender a necessidade da cobrança da taxa. No texto, de forma correta, Hang alega que a cobrança é vital para assegurar um mínimo de isonomia entre os fabricantes brasileiros e asiáticos. No ano passado, Bolsonaro também tentou impedir a aprovação da reforma tributária, mas fracassou. A maioria do Congresso até se identifica com as pautas conservadores empunhadas pelo capitão, mas, quando a agenda é econômica, felizmente, tem seguido o caminho do bom senso.
A proposta de taxação de compras de até 50 dólares em sites estrangeiros seguiu para análise do Senado e, se aprovada, será submetida ao crivo de Lula, que será, então, obrigado a formalizar a posição do governo. No momento da sanção presidencial, Haddad e o vice-presidente Geraldo Alckmin, que comanda o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, esperam prevalecer sobre Janja e parte da bancada petista refratária à adoção do novo imposto. Pontos de vista divergentes são comuns em governos e até bem-vindos quando qualificam o debate e aperfeiçoam medidas. No terceiro mandato de Lula, no entanto, sobram trombadas, bate-cabeça e descoordenação na equipe, problemas potencializados pelo distanciamento do presidente do dia a dia da administração.
Outro exemplo disso foi a polêmica sobre a distribuição de dividendos extras pela Petrobras. Lula vetou inicialmente a medida porque só ouviu as opiniões dos ministros Rui Costa (Casa Civil) e Alexandre Silveira (Minas e Energia), que trabalhavam em parceria para derrubar o então chefe da companhia, Jean Paul Prates. Só depois da decisão tomada, o presidente conversou com Haddad, que apresentou informações adicionais relacionadas à questão, como o seu impacto nas contas públicas. Com os novos dados em mãos, o presidente recuou e determinou a distribuição dos dividendos.
A Petrobras, por sinal, é motivo de uma barafunda. Até agora, não está claro qual o plano do governo para a exploração de petróleo na Foz do Amazonas. O ministro Alexandre Silveira quer pressa na execução desse projeto. Lula dá sinais de que concorda com ele, mas até agora não deixou clara a sua posição à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, refratária à ideia. A falta de sintonia fina atravanca até iniciativas mais prosaicas, como o programa Voa, Brasil, anunciado no início do ano passado pelo então ministro de Portos e Aeroportos, Márcio França, com o objetivo de vender passagens aéreas por cerca de 200 reais. O início do programa foi adiado mais uma vez, segundo o atual titular da pasta, Silvio Costa Filho, em decorrência do desastre natural no Rio Grande do Sul. Não está claro como as companhias aéreas serão ressarcidas. Isso, claro, se o plano decolar.
Reconhecida até por petistas influentes, a falta de coordenação do governo contribui para o desgaste de imagem do presidente. Quando assumiu o terceiro mandato, Lula ganhou um presente dos bolsonaristas. A invasão e depredação da sede dos três poderes deu a ele uma oportunidade de atacar o antecessor, reunir o país em defesa da democracia e construir pontes com líderes da oposição, em nome da defesa das instituições. Ao longo de 2023, o fantasma do golpismo foi perdendo força e apelo popular, e a atenção do eleitorado passou a se voltar cada vez mais para o trabalho da administração federal. Lula diz que já fez muito na economia, que semeou bastante em outras áreas e colherá frutos a partir de agora. Como de costume, externa uma visão otimista. Já as pesquisas contam uma história diferente. De maneira geral, a reprovação à gestão do petista subiu e, em algumas sondagens, já supera numericamente a aprovação. Também houve inversão em outro indicador importante: pela primeira vez, em pelo menos dois levantamentos, há mais gente dizendo que o país está caminhando na direção errada. Essas tendências tendem a se agravar se o presidente e seus aliados continuarem tropeçando nas próprias pernas.
Publicado em VEJA de 31 de maio de 2024, edição nº 2895