Poder e verbas bilionárias: por que os ministérios são tão cobiçados
Na expectativa de formar maioria no Congresso, Lula realizou sua primeira reforma. Cargo pode ser um propulsor natural de carreiras em Brasília
Na noite da última quarta-feira, o presidente Lula finalmente anunciou as mudanças que serão feitas no ministério para abrigar indicados do Centrão e, assim, ampliar a base de apoio ao governo no Congresso. Já estava acertado que os deputados André Fufuca (MA), líder do PP na Câmara, e Silvio Costa Filho, do Republicanos de Pernambuco, seriam nomeados para a Esplanada, mas havia incerteza, há pelo menos três meses, sobre quais pastas eles comandariam. A dúvida nada tinha a ver com o currículo ou a capacidade técnica deles para lidar com determinada área. Afinal, a escolha de ambos foi feita com base numa equação meramente política — a necessidade de Lula de garantir a chamada governabilidade. Após o retorno do presidente da viagem para a reunião do G20, na Índia, Fufuca e Costa Filho assumirão os ministérios do Esporte e de Portos e Aeroportos, substituindo Ana Moser e Márcio França, que comandará a pasta das Micro e Pequenas Empresas, ainda a ser criada, tornando-se a 38ª da nova gestão. Não é possível prever o reflexo das mudanças na execução de políticas públicas, mas é certo que elas terão forte impacto na carreira dos novos ministros, nos planos de seus respectivos partidos e até na disputa política nacional.
Como se sabe, o cargo de ministro representa poder, dá acesso a verbas bilionárias, viabiliza a execução de benfeitorias para a população e, por isso, é tão cobiçado por políticos e partidos. A depender do desempenho na função, um ministro pode sonhar com voos mais altos, como Fernando Henrique Cardoso e Dilma Rousseff, que se elegeram presidentes da República após passarem pela Esplanada. Não à toa, Lula escalou quatro presidenciáveis do campo da esquerda para cargos de primeiro escalão: os petistas Fernando Haddad (Fazenda) e Rui Costa (Casa Civil) e os socialistas Flávio Dino (Justiça e Segurança Pública) e Geraldo Alckmin (Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços). Os dividendos decorrentes do exercício do cargo não se resumem ao campo pessoal. Os partidos à frente de ministérios contam com instrumentos poderosos — como programas oficiais, verbas públicas e cargos — para melhorarem seu desempenho nas eleições. Esse foi um dos motivos que levaram Lula e o PT a resistir à pressão do presidente da Câmara, Arthur Lira, e do partido dele, o PP, para que Fufuca assumisse o Ministério do Desenvolvimento Social, responsável pelo Bolsa Família e pelo pagamento de benefícios de assistência social. Houve consenso no entorno presidencial de que o Bolsa Família sempre será creditado a Lula nacionalmente, mas que, se o PP assumisse a pasta, poderia aumentar sua chance de eleger prefeitos e vereadores em 2024, colhendo frutos reservados ao PT.
Na prática, o comando de um ministério serve para manter “a roda girando”, segundo Fernando Meireles, cientista político da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Ele é autor de um estudo que mostra que o prefeito de determinado partido recebe, em geral, 25% mais recursos de ministérios comandados por correligionários. “Muito se lembra do ‘toma lá dá cá’, mas, no dia a dia, não se está tratando disso. Trata-se mais de prefeitos que querem cumprir suas promessas, que não têm recursos e usam seus partidos como uma forma de enfrentar a burocracia”, afirma Meireles. “E, claro, esses partidos cumprem esse papel porque é lucrativo, aumentam a bancada, conseguem fazer mais ministérios.” Desde a eleição do ano passado, Lula sabia que teria de abrir espaço ao Centrão no governo como forma de garantir apoio para a aprovação de projetos considerados prioritários (calcula-se que as novas mudanças rendam ao Planalto mais sessenta votos no Congresso). Ciente de seu peso, o Centrão pediu alto para fechar o acordo. Protagonista na mesa de negociação, Arthur Lira mencionou cinco ministérios que seriam de interesse do seu grupo e fariam a “roda girar” como gostariam os deputados, especialmente na liberação de emendas parlamentares.
O sonho de consumo inicial do Centrão era assumir o Ministério da Saúde, que conta com um orçamento de quase 190 bilhões de reais, centenas de cargos e, pelas regras atuais, tem de receber uma cota mínima das indicações de gastos feitas por deputados e senadores. Só neste ano foram empenhados mais de 11 bilhões de reais em emendas pela pasta. O PP já tinha até um substituto — o deputado licenciado Doutor Luizinho, conhecido braço direito de Lira e secretário de Saúde do Rio de Janeiro — para a ministra Nísia Trindade, que comandou a Fiocruz durante a pandemia de Covid-19. Nos corredores do Congresso, a ministra vinha sendo criticada por impor barreiras à liberação de verbas do antigo orçamento secreto faltando um ano para as eleições municipais, e os prefeitos, com dificuldades até para honrar com a folha de pagamento, não paravam de bater à porta dos parlamentares. O Centrão alegava que Nísia contribuía para o clima de insatisfação dos deputados com o governo. A substituição dela por um representante da Câmara resolveria o problema. A pressão não surtiu efeito. Sabedor do que estava em jogo, Lula não abriu mão da joia da coroa, da mesma forma que segurou firme o petista Wellington Dias no Ministério do Desenvolvimento Social.
O orçamento bilionário da Saúde continuará a ser executado com o carimbo do PT. “A liberação de verbas representa a força que se ganha junto aos gestores. O prefeito está desesperado, e, após ser salvo, ele fala na campanha: ‘Esse é o cara que não deixou o hospital parar de funcionar’. No interior, o hospital é uma igreja. As pessoas olham para o local com mais esperança do que para a igreja, porque é lá que elas se tratam”, diz o senador Weverton Rocha (PDT-MA). O PP de Lira topou o Esporte ao perceber que seus pedidos iniciais não seriam atendidos e receber a promessa de que a pasta será turbinada com o setor de apostas esportivas, o que o ministro Fernando Haddad tentará impedir. Hoje, o ministério tem um orçamento de 2 bilhões de reais. Caso o Congresso aprove a regulamentação das apostas esportivas, o governo espera arrecadar 12 bilhões de reais, e uma parte desse dinheiro irá para os cofres do ministério, o que faz brilhar os olhos da turma do PP.
Desde o início do governo, a medalhista olímpica Ana Moser comandava o ministério. Houve resistência à sua demissão porque ela, além de conhecer as necessidades da área, tinha um peso simbólico — de mostrar a suposta importância que o governo Lula dá à presença feminina em espaços de poder. O pragmatismo falou mais alto, e Ana Moser caiu por não ser filiada a partido e não ter voto no Congresso. Nas redes sociais, petistas até ensaiaram uma resistência ao viralizar um vídeo da sessão de votação do impeachment de Dilma Rousseff, no qual Fufuca anuncia — envolto em uma bandeira do Maranhão e com o dedo em riste — voto favorável à cassação da presidente. Pragmático, Lula relevou o episódio. O caso do remanejamento de Márcio França do Ministério de Portos e Aeroportos para o das Micro e Pequenas Empresas, a fim de abrir espaço para o Republicanos, foi mais custoso. O PSB de França trabalhou para evitar a perda de espaço e demonstrou especial irritação com a fritura à qual o ministro foi submetido antes de o deputado Silvio Costa Filho ser anunciado para o seu lugar.
Foi considerada uma perda de prestígio o remanejamento para um ministério criado única e exclusivamente com o objetivo de desatar o nó da reforma ministerial. Em tom de reclamação, interlocutores de França chegaram a dizer que a nova pasta levava o diminutivo até no nome, o que evidenciava a puxada de tapete. Apesar de tudo, o socialista aceitou o prêmio de consolação. No Planalto, diz-se que o sacrifício do PSB era necessário porque o partido contava com três ministérios apesar de ter apenas quinze deputados. O Republicanos tem uma bancada de 41 deputados, e o PP de 49. Os outros dois ministros do PSB são o vice-presidente Geraldo Alckmin, que resistiu a deixar o ministério para facilitar a composição com o Centrão, e Flávio Dino. Ambos são lembrados como potenciais candidatos à Presidência caso Lula não concorra à reeleição. Após a sucessão presidencial de 2022, Dino cobrou de Lula uma cadeira turbinada. Petistas sugeriram ao presidente que desmembrasse o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, mas Dino resistiu à ideia e fez correligionários espalharem a versão de que só assumiria a pasta se ela mantivesse as duas funções. Caso contrário, não deixaria o mandato de senador para comandar um órgão esvaziado. Deu certo.
No jogo do poder em Brasília, Dino manteve todas as atribuições e, como resultado, tornou-se porta-voz e comentarista das principais operações da Polícia Federal, o que lhe rende um natural protagonismo. Além disso, consolidou-se como um “showman” do governo e viu aumentar a sua popularidade, especialmente nas redes sociais. Seu protagonismo já causa uma ciumeira dentro do PT, que não quer concorrência interna na corrida presidencial de 2026 (por isso, muitos gostariam que ele fosse nomeado ao STF). “O fato de ter a insígnia e o carro com a placa preta já é inesquecível do ponto de vista eleitoral e é um adereço curricular bastante usado nas campanhas. Eu brinco que é o feitiço da chapa preta”, afirma o publicitário Fernando Barros. “E eu nunca vi nenhum ministro que não se aproveitasse do cargo, do ponto de vista midiático, até as últimas consequências. A possibilidade de ele aparecer como parlamentar é uma e como ministro é dez vezes maior”, acrescenta. O feitiço da placa preta tem o respaldo das urnas. Mesmo com a derrota de Jair Bolsonaro na sucessão presidencial, cinco ex-ministros do capitão foram eleitos para o Senado. Três deles — Damares Alves, Marcos Pontes e Sergio Moro — jamais tinham exercido qualquer mandato. Não foi um caso isolado.
Em sua primeira disputa eleitoral, o na época ex-ministro da Educação Fernando Haddad conquistou a prefeitura de São Paulo. Neófita em eleições, a ex-chefe da Casa Civil Dilma Rousseff, exaltada como a principal ministra do segundo mandato de Lula, venceu a eleição de 2010 e se tornou a primeira e única mulher a presidir o país. “No Brasil, esse atalho de indicação não eleitoral para cargos políticos é muito importante. A maneira mais fácil de subir na política brasileira é via indicação, e não eleitoralmente”, afirma o decano de ciências sociais da Universidade de Oxford, Timothy Power, que se dedica a estudar a política brasileira. “Normalmente, o candidato vai usar uma foto dele com o presidente e dizer que foi ministro. É um atalho psicológico para o eleitor, que pensa: ‘Eu não conheço esse cara, mas eu sei que ele estava toda semana com o presidente’. É uma maneira de reduzir os custos informacionais do eleitor.” Desde a redemocratização, dois ministros — Dilma e Fernando Henrique — ascenderam da Esplanada para o Palácio do Planalto. Ciro Gomes tentou o mesmo feito quatro vezes. Marina Silva, três. Para outros cargos, no entanto, o ministério é um senhor trampolim. É por isso que os políticos e os partidos brigam tanto para comandá-los. É por isso também que Lira pediu tão alto, e Lula barganhou quanto pôde o pagamento. Experientes, eles sabem que os ministérios são vigorosos instrumentos de poder.
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2023, edição nº 2858