Personagem-chave no escândalo da Previdência vai abrir empresa a 2km da sede do INSS
Ele mira aposentados e pensionistas como clientes

De maneira resumida, o esquema de corrupção que operava no Ministério da Previdência funcionava assim: servidores públicos corruptos, entidades mal-intencionadas e sindicalistas se uniram, forjaram documentos, violaram sistemas de controle do governo e, durante anos, subtraíram pequenas quantias das já minguadas aposentadorias de milhões de brasileiros. A fraude rendeu bilhões de reais à quadrilha, que começou a ser desbaratada pela Polícia Federal há duas semanas. Como de praxe em casos assim, descobriu-se que os envolvidos usaram o dinheiro roubado para comprar carros de luxo, mansões e bitcoins. Alguns, por outro lado, resolveram investir parte do lucro na expansão do “negócio”. Apontado como o principal operador do esquema, o lobista Antonio Carlos Camilo Antunes é sócio de uma miríade de empresas que foram usadas não só para ludibriar os idosos, mas também para receber, distribuir e ocultar a bolada desviada. Uma delas, criada recentemente, revela o nível da ousadia dos criminosos. O estabelecimento fica em Brasília, a menos de 2 quilômetros do edifício-sede do INSS, e mira aposentados e pensionistas como clientes.

Na investigação da Polícia Federal consta que Antonio Carlos, conhecido como o “Careca do INSS”, é dono de 22 empresas que atuam em vários ramos, incluindo call center, consultoria e até locação de veículos. A nova empresa, a 23ª, que não aparece na lista, foi registrada na Receita Federal no fim de março passado. O nome é sugestivo: Amigo Center. A área de atuação é mais sugestiva ainda. De acordo com os documentos consultados por VEJA, a atividade principal da empresa é o teleatendimento, mas ela também está habilitada a intermediar e agenciar serviços e negócios, conceder consultoria técnica em gestão empresarial e atuar como correspondente de instituições financeiras — uma espécie de holding da fraude. Há duas semanas, pouco antes da operação da PF, as obras no local onde a loja vai funcionar estavam em ritmo acelerado. Os operários davam os últimos retoques no acabamento, a mobília começava a ser colocada e o letreiro com o nome do estabelecimento foi instalado.
O lobista-empresário, segundo a PF, é dono de uma frota de doze carros de luxo. Pelas contas bancárias dele, circularam 53 milhões de reais em recursos provenientes dos sindicatos e associações envolvidos com os descontos ilegais dos aposentados. Ele tinha, inclusive, procurações para atuar junto ao INSS em nome das entidades investigadas. Entre 2023 e 2024, em apenas oito meses, a Associação dos Aposentados Mutualistas para Benefícios Coletivos (Ambec), uma das onze entidades acusadas, repassou quase 12 milhões para o conglomerado do lobista. A PF descobriu que parte desse dinheiro foi usada para pagar propina aos servidores públicos que participavam da trama. No escritório dele foram apreendidos cadernos com anotações sobre valores que supostamente teriam sido repassados a ex-diretores do INSS. Na semana passada, as portas da Amigo Center estavam fechadas, ninguém apareceu para trabalhar, à exceção de dois seguranças que vigiavam o local. Uma coincidência: a empresa é vizinha da Associação Nacional de Servidores Públicos da Previdência e da Seguridade Social (Anasps), entidade que representa os funcionários do INSS. Outra: a entidade também é acusada de fazer descontos não autorizados nos contracheques dos aposentados.

Procurada, a Anasps informou que não tem conhecimento de qualquer reclamação sobre eventuais descontos indevidos. “Não temos queixas sobre descontos irregulares, porque para o servidor ser sócio da associação que presido não basta preencher só uma ficha de filiação. Ele também precisa conseguir um código de consignação no Serpro. Nosso desconto é na folha do Serpro, sobre o qual há um controle muito grande”, afirma Alexandre Lisboa, presidente da entidade. Não é o que diz a aposentada Maria da Conceição Ramos, de 90 anos. Ex-técnica administrativa do INSS, ao tomar conhecimento do escândalo, há duas semanas, ela decidiu conferir os seus contracheques. Descobriu que, sem qualquer autorização, nos últimos cinco anos quatro entidades diferentes debitaram valores de sua aposentadoria — entre elas a Anasps. O total dos descontos foi de 10 000 reais. A ex-funcionária ingressou com uma ação na Justiça pedindo ao INSS o ressarcimento do dinheiro.

Já sobre a primeira coincidência — o fato de a sede da Anasps ser colada à da Amigo Center—, o presidente da associação garante que realmente é o que parece, uma curiosa coincidência. “Vi que estão construindo alguma coisa ali, mas não sei nem do que se trata”, afirma, acrescentando que não conhece os vizinhos e nem os personagens citados no escândalo. Procurado por VEJA para falar sobre o novo empreendimento, Antonio Carlos se pronunciou por meio de uma nota. “A Amigo Center está sendo estruturada para prestar serviços nas áreas de apoio administrativo, incluindo Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC), TI, organização e promoção de eventos, editoração e correspondente bancário”, informou. Não comentou o fato de os aposentados serem os clientes preferenciais e se eximiu de qualquer envolvimento na fraude: “O empresário nega as acusações que lhe têm sido feitas, está pronto para colaborar com as investigações, aguarda a finalização dos inquéritos e tem cumprido todas as determinações judiciais fixadas até o momento”.

Na terça-feira 13, o INSS notificou os 9 milhões de aposentados que tiveram descontos em seu contracheque. Eles terão quinze dias úteis para confirmar se autorizaram ou não a operação. Depois, as entidades que cobraram as mensalidades terão mais quinze dias para contestar ou não a informação. As associações e sindicatos envolvidos que não conseguirem provar que agiram corretamente terão de devolver o dinheiro. Essa checagem está sendo realizada de maneira digital, por aplicativo, o que certamente será uma dificuldade para grande parte dos idosos. Outra dúvida é sobre a esperada boa vontade das entidades em ressarcir o que foi roubado dos aposentados de maneira automática, admitindo, portanto, que cometeram um crime. O Planalto espera que essas medidas amorteçam o impacto negativo causado pelo escândalo. Até quinta 15, ainda não havia pesquisas mostrando o tamanho do dano que o roubo das aposentadorias causou na imagem do governo e do presidente da República, mas pode-se depreender pela repercussão do caso que o estrago foi grande. Um levantamento da Quaest nos principais aplicativos mapeou 3,6 milhões de mensagens que citavam diretamente o tema. Apenas 3% delas traziam alguma defesa do governo ou do presidente, apesar do esforço da comunicação oficial em tentar eximir Lula de qualquer responsabilidade.

O PT, por exemplo, divulgou um vídeo em suas redes sociais culpando o ex-presidente Jair Bolsonaro pelo escândalo e celebrando o atual presidente por ter desvendado o assalto aos idosos. “Quem defende os aposentados e pensionistas é o Partido dos Trabalhadores, é o presidente Lula. Quando foi instituída a fraude no INSS? Foi no governo Bolsonaro. Essa é a verdade”, diz a publicação do partido. Instado a falar sobre o assunto, Lula seguiu na mesma toada: “Nós resolvemos desmontar uma quadrilha que foi criada em 2019, e vocês sabem quem governava o Brasil em 2019”, afirmou. Os desvios, na verdade, começaram em 2016, durante o governo Temer, atravessaram de fato todo o governo Bolsonaro, mas se multiplicaram em volume e valores no atual governo, que foi advertido várias vezes sobre as fraudes, mas nada fez para interrompê-la. O Planalto, como se sabe, foi atropelado pela investigação da Polícia Federal. Rui Costa, o chefe da Casa Civil, chegou a reclamar da Controladoria-Geral da União, que, segundo ele, não avisou antecipadamente a cúpula do governo sobre a apuração — e nem deveria, diga-se.

Por ter um grande apelo eleitoral, o escândalo do INSS tem mobilizado governistas e oposicionistas no Congresso. Um vídeo publicado pelo deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) atribuindo a Lula a responsabilidade pela fraude teve mais de 137 milhões de visualizações. Nele, entre outras coisas, o parlamentar destaca que uma das entidades investigadas pela PF tem entre seus dirigentes José Ferreira da Silva, o Frei Chico, irmão do presidente da República. De olho nesse filão, na segunda-feira 12, parlamentares de oposição protocolaram um requerimento para a instalação de uma CPMI. Os oposicionistas dizem que as investigações da Polícia Federal ainda estão na superfície do esquema. Acreditam que um mergulho profundo na apuração poderá levar a conexões mais amplas e importantes, inclusive dentro do próprio governo. Na direção contrária, os governistas que assinaram o requerimento justificam que o trabalho da comissão vai mostrar que Jair Bolsonaro e seus aliados são os responsáveis pela fraude. É esse tipo de motivação, tanto de um lado como de outro, que tem desmoralizado o trabalho das sucessivas comissões parlamentares de inquérito. “A gente tem que apontar quem estava no governo Lula e foi conivente. Ou, pior ainda, quem embolsou dinheiro com esse negócio. Aí tem que ir para a cadeia, assim como quem estava no governo Bolsonaro e no governo Temer”, afirmou a deputada Tabata Amaral (PSB-SP). Ela está certa. Diante de um caso tão rumoroso, o que menos importa é o pedigree do ladrão. Em tempo: a Amigo Center, do “Careca do INSS”, será inaugurada no próximo mês.
Publicado em VEJA de 16 de maio de 2025, edição nº 2944