Partido de Bolsonaro recebeu a maior parte das emendas do governo Lula
Levantamento de VEJA mostra que PL ficou com R$ 1,7 bilhão dos recursos, que tiveram liberação acelerada em meio a votações cruciais no Congresso
Escaldado pelos esquemas de corrupção que pavimentaram as alianças construídas nos governos anteriores do PT, como o mensalão e o petrolão, Luiz Inácio Lula da Silva passou a campanha mantendo o discurso de que, se eleito, conduziria relações distintas com o Congresso. Sem explicar como isso se daria, ele classificava o pagamento das emendas de relator, o famigerado “orçamento secreto”, usado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro para atrair apoio legislativo, como “a maior excrescência da política orçamentária deste país” e chamava Bolsonaro de “bobo da corte” por não controlar o orçamento. “Quem cuida do orçamento é o Lira”, dizia o candidato, ao citar o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Essas bravatas de palanque não demoraram muito tempo para dar lugar a um outro tipo de comportamento. Passados seis meses de seu governo, Lula, como bom pragmático que é, rendeu-se ao pragmatismo político.
É verdade que os cofres demoraram para abrir, mas, quando isso ocorreu, foi de forma generosa. Levantamento feito por VEJA mostra que dos 16,3 bilhões de reais que o governo empenhou neste ano, mais da metade (8,6 bilhões de reais) foi em julho, em meio a votações — vitoriosas — de projetos importantes no Congresso. O montante de dinheiro empenhado, ou seja, reservado, até julho deste ano só não supera os valores de 2020 — ano em que eclodiu a pandemia (18,5 bilhões de reais) — e 2022, que foi ano eleitoral (21,9 bilhões de reais). O fluxo de liberação se intensificou a partir de maio, quando a Câmara aprovou o arcabouço fiscal. Foi um momento em que, apesar da vitória, a articulação do governo no Congresso, feita pelo ministro Alexandre Padilha (Relações Institucionais), começou a dar sinais preocupantes e passou a ser criticado abertamente por Arthur Lira. Na semana passada, os deputados aprovaram outros dois temas muito caros à equipe econômica: a reforma tributária e a volta do voto de desempate no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), última instância de julgamentos tributários. Os triunfos vieram de forma tranquila, uma situação que não se desenhava no começo do ano, quando o governo tinha base pouco confiável mesmo após ter distribuído ministérios a nove partidos. “Os parlamentares valorizam mais as emendas, e os partidos valorizam os ministérios”, resume o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE).
A reserva de fatias bilionárias do Orçamento atendeu especialmente ao Centrão. Somadas, siglas como PL, PP, União Brasil, Republicanos, PSD e MDB levaram 8,3 bilhões de reais. Partido do presidente Jair Bolsonaro e, em tese, a principal legenda da oposição, o PL foi quem levou o maior naco, com 1,7 bilhão de reais (veja o quadro). Em uma carta ao partido nesta semana, na qual tentou jogar água na fervura da bancada depois que vinte deputados votaram a favor da reforma tributária, Valdemar Costa Neto, presidente da sigla, fincou pé na oposição, mas defendeu o pragmatismo. “Muitos parlamentares foram eleitos com apoio de prefeitos e vereadores e precisam levar benefícios para suas regiões e seu povo. E se, para isso, precisarem votar com o governo em pautas específicas, que façam”, escreveu. Entre os parlamentares do PL, um dos mais beneficiados foi o deputado Josimar Maranhãozinho (MA), com 32,1 milhões de reais. Antigo apoiador de Bolsonaro, para quem fez campanha no ano passado, ele já foi flagrado, em uma investigação da PF em 2021, manuseando maços de dinheiro vivo que, suspeita-se, tenha sido desviado de emendas.
Como não poderia deixar de ser, a lista tem caciques importantes do Congresso no topo. O próprio Arthur Lira teve um montante expressivo liberado (29,3 milhões de reais), assim como os relatores da reforma tributária na Câmara, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), com 24,2 milhões de reais, e no Senado, Eduardo Braga (MDB-AM), com 59 milhões de reais. Eliane Nogueira (PP-PI), mãe do senador Ciro Nogueira (PP-PI), que exerceu o mandato dele como suplente enquanto o filho comandava a Casa Civil de Bolsonaro, igualou-se a Braga como parlamentar com maior valor empenhado (veja o quadro).
Os últimos dias mostraram ainda que um pouco de pressão sempre funciona. A maior parte (quase metade) do dinheiro reservado às emendas veio do Ministério da Saúde, comandado por Nísia Trindade, ministra da cota pessoal de Lula que havia entrado na linha de tiro do Centrão. Políticos graúdos do grupo, que se acostumaram a ocupar a cadeira ou a influir na pasta nos governos anteriores, pretendiam desalojar Nísia de olho no vasto orçamento e na capilaridade do ministério. “O importante é que se remetam os recursos dentro da estratégia de política pública do ministério afetado. Na Saúde, por exemplo, não se coloca um tomógrafo numa cidade de 5 000 habitantes, porque não tem escala”, diz Marcus Pestana, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado.
A execução de emendas é prevista no orçamento e não há nada de ilegal. Os repasses não se confundem, por exemplo, com a pura e simples compra de apoio político ao governo Lula no mensalão, que envolvia desvios de recursos de estatais para o bolso de parlamentares. Neste ano, cada deputado pode indicar até 32 milhões de reais em emendas individuais, montante que é de 59 milhões de reais para cada senador. Desde 2015, as emendas individuais são impositivas, ou seja, de execução obrigatória pelo governo, mudança que empoderou o Legislativo frente ao Executivo. Em 2019, no governo Bolsonaro, as emendas de bancadas estaduais também se tornaram obrigatórias. Ainda sob o ex-presidente, a partir de 2020, disseminou-se o uso das emendas de relator, o orçamento secreto, declarado inconstitucional pelo Supremo no final do ano passado. “Há vários governos, o que o Legislativo quer é a caneta, para indicações políticas, e a chave do cofre. Assim, cada vez mais, abocanha um pedaço maior do orçamento da União”, diz Gil Castello Branco, secretário-geral do Contas Abertas.
Embora não sejam ilegais e tenham sido incorporadas ao jogo político, há ressalvas ao uso indiscriminado de emendas. Apesar das críticas de Lula ao orçamento secreto, boa parte do dinheiro liberado hoje tem, igualmente, destinação pouquíssimo transparente. Trata-se das “transferências especiais”, que totalizam 6,3 bilhões de reais neste ano (38,6% do total empenhado). Esse tipo de repasse foi criado em 2019, por meio de uma lei da deputada Gleisi Hoffmann (PR), presidente do PT. Com essas emendas, o dinheiro vai direto para a conta de estados e municípios, sem maiores burocracias ou análise de projetos e sem indicação da área em que será aplicado. De tão simples os repasses, a ferramenta ganhou o nome de “emenda Pix”. A prática tem sido amplamente disseminada. Dos 30,8 milhões de reais empenhados para o senador Davi Alcolumbre (União-AP), aliadíssimo de Lula, nada menos que 29,5 milhões de reais vêm de emendas Pix. Dos 29,3 milhões de reais destinados a Lira, 15,7 milhões foram dessa forma. As facilidades não se limitam a aliados: o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) teve 10,9 milhões de reais empenhados dessa forma, dentro de um total de 12,8 milhões de reais em emendas.
Outro problema no uso crescente de emendas são as distorções que criam no orçamento público ao comprometer boa parte do planejamento com gastos paroquiais e eleitoreiros. Um artigo publicado em 2021 na revista Conjuntura Econômica, da FGV, pelo ex-governador Paulo Hartung e os economistas Marcos Mendes e Fabio Giambiagi, analisou o peso das emendas nos valores alocados a investimentos públicos da União. Concluiu-se que corresponderam a nada menos que 51% de todo o investimento. “Revisar essa lógica é uma exigência que será demandada a quem for eleito em 2022, a começar por uma PEC que derrube esses dispositivos, incluindo as emendas impositivas. Estas não fazem parte da tradição da estrutura do presidencialismo brasileiro”, diz o texto intitulado “As emendas parlamentares como novo mecanismo de captura do Orçamento”.
Embora não se deva criminalizar o uso das emendas por si só, não há dúvida de que se trata de um instrumento que demanda transparência e fiscalização intensa. Fora as peripécias vistas com o orçamento secreto, de compras de maquinário agrícola suspeitas de superfaturamento a fraudes no SUS, os repasses parlamentares já protagonizaram escândalos variados ao longo da história recente, como o dos Anões do Orçamento, revelado por VEJA em 1993. Se for incontornável para o bom entendimento político, o expediente tem de ser cada vez mais republicano e ter como norte os interesses do país. Porque, como se sabe, não é o dinheiro do governo que está em jogo — é dinheiro do contribuinte.
Publicado em VEJA de 19 de julho de 2023, edição nº 2850