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Para o bem da segurança pública, é preciso superar falso dilema nacional

Professor da FGV, que está lançando livro com propostas para a área, aponta "isolacionismo institucional" como maior entrave no combate ao crime no país

Por Daniel Vargas
Atualizado em 5 ago 2020, 15h23 - Publicado em 29 jul 2020, 18h07

O avanço da pandemia nos presídios ativou um velho debate no país. O que fazer para evitar o colapso nos presídios superlotados, insalubres e violentos? O CNJ editou recomendação orientando os magistrados a flexibilizar prisões. Mais de 30 000 apenados, incluindo traficantes e estupradores, foram transferidos para regime domiciliar. Indignados, setores da sociedade e congressistas têm reagido com vigor: ‘é ultrajante’, ‘um absurdo’, ‘inadmissível’.

Nos presídios, como em tudo o mais na segurança pública do país, o debate costuma girar em torno de uma questão de direito penal: se devemos prender mais e com mais rigor para combater o crime; ou se prisão não resolve e o que precisamos é de assegurar garantias individuais. Há décadas, o país está polarizado entre punitivistas, para quem “bandido bom é bandido morto”, e os vitimistas, para quem toda forma de prisão é uma violência indevida. Como em um filme mostrado várias vezes, cada nova cena da segurança no Brasil reprisa o mesmo script.

O grande desafio do Brasil é mudar o roteiro e redirecionar a reflexão sobre o combate à criminalidade da superfície do direito penal para a infraestrutura do estado. Não basta olhar a segurança sob o viés do juiz midiático ou do promotor valentão, que prendem sem piedade, custe o que custar. Também não basta, contra essa tendência, limitar-se à defesa abstrata de princípios e valores essenciais à vida, sem nada propor ou fazer para mudar a realidade dos presídios, da polícia e da Justiça.

Quando observamos os dados sobre qualidade da área social no Brasil desde a Constituição de 1988, percebemos que todas as áreas — educação, saúde e assistência — evoluíram em alguma medida.  Menos uma: a segurança pública.

O que está por trás desse problema crônico é o isolacionismo institucional. Em cada um dos estados brasileiros, Polícia Militar não fala com Polícia Civil. As duas não falam com o Ministério Público. O MP também não conversa com o magistrado, a não ser quando não deve. Este evita o contato com o sistema prisional, que, por sua vez, desconhece completamente a comunidade para a qual deve devolver o preso. Multiplique esse silêncio institucional por 27 unidades da federação e se tem a dimensão da crise.

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Os efeitos do isolacionismo são sombrios: menos de 10% dos homicídios são desvendados; uma fração vai a julgamento; outra fração acaba condenada, ao mesmo tempo que as prisões estão abarrotadas de gente cujo processo não transitou em julgado, muitos por crimes de menor relevância — a vasta maioria negra, pobre e moradora de periferia.

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Como surgiu o isolacionismo? Os traumas do regime militar e o receio de que a concentração de poder policial nas mãos da União pudesse reabrir, no futuro, a janela para a violência de estado convenceram os constituintes de 1988 a descentralizar o sistema de segurança pública.  Em síntese, com o intuito de preservar a democracia contra novos desmandos do autoritarismo, o Brasil optou por implementar um regime de segurança descentralizado, compartimentado e rígido.

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Por trinta anos, nenhum governo brasileiro conseguiu superar este problema. Até que o país foi perdendo a fé na capacidade da inteligência, da organização e, sobretudo, das instituições organizadas da democracia para proteger, investigar e punir efetivamente os crimes. Um terreno fértil para a violência, para o populismo judicial, que cada vez mais se torna político.

A reforma da segurança que o Congresso aprovou recentemente não contribuiu em nada para consertar a infraestrutura da segurança no país. Para se ter uma medida, as principais vitórias do ex-ministro Sergio Moro foram a aprovação do Regime Disciplinar Diferenciado mais duro; a infiltração de agentes; e o maior rigor na progressão de regime, além de um criar regime fechado pra organizações criminosas. Já as principais derrotas foram as rejeições da prisão em segunda instância; do excludente de ilicitude ampliada (chamado de ‘licença para matar’); e do ‘plea bargain’. Tudo oscila entre os desejos de mais ou menos prisão.

Agora, no auge da pandemia, o drama nas prisões cobra a conta da desorganização da segurança no país.  O que fazer: tapar os olhos para a ameaça de mortandade nas prisões abarrotadas? Ou correr o risco de devolver criminosos violentos à sociedade para reduzir contaminação?  A escolha é dramática e, em qualquer dos casos, quem sairá vencendo será a revolta e a indignação da sociedade contra o Estado de Direito e a Justiça.

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O que o país precisa enxergar é que o nosso sistema de segurança pública está todo desestruturado. Polícia Civil e Militar rivalizam há décadas: quem prende não investiga. Ambas competem com o MP, que cada vez mais disputa atenção com o Judiciário na produção de provas. E todos querem distância das penitenciárias, absolutamente desconectadas de qualquer porta para a comunidade.

Cada um dos elos da segurança pública está rompido no país. Para consertá-los, o país precisa de novo projeto, muito distinto do punitivismo ou do vitimismo que prevalecem entre nós, e centrado em dois pilares: a cooperação entre entes da federação e setores da segurança, e a inovação institucional.  Em um livro recém-lançado, proponho caminhos para mudanças institucionais exemplares que podem começar a ser implantadas desde já.

As medidas de cooperação se desdobram em três eixos. No plano vertical, é urgente recriar um Ministério de Segurança Pública, com a responsabilidade de orquestrar e dinamizar a ação dos municípios e estados no país, com base em dados e na organização de uma “ciência da segurança pública” concentrada menos em estatísticas vagas, e mais em experiências institucionais concretas. No plano horizontal, na relação entre órgãos da segurança pública, é necessário demarcar a linha no chão e saber com clareza onde termina a responsabilidade de um e começa a do outro. Uma preliminar é redefinir a força da lei sobre a política dos atores jurídicos. O populismo judicial nunca foi solução para nada.  É, ao contrário, um sintoma de que as instituições democráticas são falhas e precisam se reorganizar.

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No plano transversal, é decisivo enfrentar o drama do racismo institucional que prevalece há décadas no Brasil.  Desde o nascimento, atiramos negros e pobres, moradores de periferia, em uma roleta russa. A solução prática não é fácil. Mas uma medida relevante, neste caso, é a criação de uma Ouvidoria Nacional para colher e investigar reclamações de abusos dos cidadãos.

Essas medidas, por si só, não são suficientes para resolver o problema da violência. Muito menos são capazes de solucionar o drama da pandemia nas prisões. Mas, no seu conjunto, demarcam passos decisivos para a reorganização institucional do país, reconciliando nossas aspirações democráticas de proteger direitos com o dever do estado de combater o crime e, se necessário, prender e punir rigorosamente.

Daniel Vargas, doutor em direito em Harvard, professor da FGV EESP e da FGV Direito Rio e é autor do livro Segurança Pública: Um Projeto para o Brasil (Editora Contracorrente)

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