Os xerifes do pedaço
Gás, “gatonet”? Esses já são negócios pequenos para as milícias. Elas ganham com a construção de imóveis ilegais e precários, como os que desabaram
Um estrondo na sexta-feira 12 colocou de forma trágica no mapa brasileiro a favela da Muzema, encravada nas encostas da Zona Oeste do Rio de Janeiro. O colapso das frágeis estruturas de dois prédios — os moradores contam ter ouvido “estalos” — tirou a vida de vinte pessoas (até a contagem da quinta-feira 18) e escancarou a desordenada e criminosa expansão imobiliária tocada pela mais antiga milícia carioca, a de Rio das Pedras. Entranhada em instituições públicas e liderada por policiais e ex-policiais, a organização descobriu no ramo da construção, cuja cadeia produtiva controla, da invasão do terreno à venda de unidades como as da Muzema, um de seus negócios mais rentáveis. Os prédios se multiplicam sem o aval da prefeitura, em um deboche à lei que tem na impunidade seu principal motor.
Escutas telefônicas interceptadas pelo Ministério Público estadual às quais VEJA teve acesso expõem a engrenagem propulsora das atividades dessa milícia: os marginais vêm obtendo informações privilegiadas sobre operações de fiscalização da prefeitura e ainda contam com facilidades para abrir empresas em nome de pessoas que servem de fachada aos milicianos. Em uma das ligações, um tal Manoel de Brito Batista, conhecido como Cabelo, avisa um comparsa de uma iminente inspeção da prefeitura. Em outra, informa sobre uma provável batida da polícia ambiental em obras da gangue. “Acabaram de me ligar, falaram que vai ter (operação). Muzema e Rio das Pedras”, alerta. Batista (hoje preso) vem a ser o braço financeiro e “síndico” dos imóveis da quadrilha. É ele também que aparece em negociação flagrada pelo MP para remunerar um funcionário da prefeitura (ainda não identificado) por um serviço valioso: Batista precisava de ajuda para liberar o registro de uma empresa de material de construção. Conseguiu pagando 3 000 reais.
Alvo da Operação Os Intocáveis, deflagrada pelo MP em janeiro deste ano, a milícia de Rio das Pedras seguiu firme na gigantesca região de mais de 70 000 moradores entre a Barra da Tijuca e Jacarepaguá. Mas sofreu um baque com a fuga do número 1 da organização, Adriano Magalhães da Nóbrega, o ex-capitão da Polícia Militar que chegou a receber em 2003 uma honraria do hoje senador Flávio Bolsonaro, o filho Zero Um do presidente (veja o quadro). Expulso da corporação em 2014, Adriano está foragido há três meses. A expansão em Muzema ficou a cargo do major da PM Ronald Paulo Alves Pereira, este, sim, preso na operação. Em seu celular, os policiais encontraram plantas de imóveis que seriam construídos por lá. O major também foi homenageado pelo então deputado estadual Flávio. Além de milicianos, Adriano e Ronald integram um certo Escritório do Crime, grupo de pistoleiros suspeito de ter executado vários assassinatos. Um documento interno da PM obtido por VEJA mostra que, mesmo encarcerado, Ronald não perdeu o prestígio na corporação: continua recebendo o salário de 18 898 reais e foi convidado em fevereiro para um evento da Escola Superior da Polícia Militar, ao qual não compareceu por motivos óbvios. Acionada por VEJA, a PM não quis comentar o assunto.
A Muzema é um fenômeno imobiliário de duas décadas. Um documento que chegou a VEJA via Lei de Acesso à Informação mostra que, mesmo quando o poder público tenta coibir a ação da milícia, o jogo tem sido de gato e rato. O levantamento revela que a administração do prefeito Marcelo Crivella (PRB) realizou 32 demolições de obras irregulares na cidade de 2017 a 2019. Destas, cinco estavam próximo dos dois prédios que desabaram. A reportagem de VEJA visitou os endereços assinalados e averiguou que em quatro deles novas construções estão sendo erguidas. “Os milicianos são muito mais ágeis que a prefeitura”, diz um funcionário que atuou na repressão a essas obras no passado. Ele virou alvo de ameaças e, para fazer seu trabalho, passou a circular em carro blindado, cercado de seguranças. Para evitar que seus empreendimentos sejam demolidos, a milícia adota a estratégia de alugar e vender os imóveis antes que fiquem prontos. Quando vem a turma da prefeitura para pôr a estrutura abaixo, os moradores que ocuparam a obra entram na Justiça para impedir a ação.
Equivocadamente vistos no passado com benevolência — como justiceiros que freavam o tráfico em lugares aonde o Estado não chega —, os milicianos foram se espalhando (hoje dominam pelo menos vinte bairros do Rio) e diversificando suas atividades. Em Rio das Pedras, começaram a lucrar com transporte de vans e fornecimento de botijões de gás e de pontos ilegais de TV a cabo, o “gatonet”. Num segundo momento, trataram de expandir seus tentáculos para a política — em 2004, o líder comunitário Josinaldo Francisco da Cruz, o Nadinho de Rio das Pedras, foi eleito vereador. Cinco anos depois, acusado de matar um rival e indiciado pela CPI das Milícias, ele seria assassinado. Quando não se candidatam, os milicianos usam os votos da população que subjugam como moeda de troca no balcão da política estadual. Mais recentemente, vêm tirando território dos traficantes e ingressando, eles próprios, no comércio de drogas.
O mercado imobiliário é algo relativamente novo para essa e outras quadrilhas. Elas ganham em todas as frentes: grilagem do terreno, construção, venda e um tipo muito peculiar de administração, que nada administra. “Na Muzema, cobram 100 reais por mês, mas nada reverte em melhoria para os condomínios. E, se não pagamos, eles expulsam”, conta uma antiga moradora do condomínio Figueiras do Itanhangá, onde ficavam os dois prédios que desabaram (só para lembrar, conceitos como escritura e IPTU são solenemente ignorados). Há vários relatos de testemunhas da vertiginosa velocidade com a qual edifícios sobem e são ocupados na região — às vezes se passam apenas quatro meses do chão à obra pronta. Aí se seguem ligações clandestinas de água, luz e internet. Conforme as investigações em curso, a Associação de Moradores da favela foi transformada em uma espécie de cartório — policiais encontraram por lá cópias de contratos de venda e aluguel de imóveis chancelados pela milícia. Mesmo quando não é a proprietária, a gangue entra no circuito entre o dono e o comprador para faturar como intermediária. Cobra de 10% a 15% do valor do negócio. Na Baixada Fluminense, já existem milicianos atuando na extração ilegal de areia para construção.
A reação da prefeitura e da Justiça, que enfim derrubou liminares que impediam a demolição de prédios irregulares, veio, como de praxe, depois da tragédia consumada. A previsão é que dezesseis edifícios sejam postos abaixo no condomínio Figueiras do Itanhangá. Mas as construções irregulares brotam por toda a cidade, inclusive ali do lado, no Anil, bairro vizinho. A região é um canteiro de obras. Lotes de 300 000 reais são anunciados na internet com a promessa de confortáveis prédios de até dez andares (limite superior ao permitido). “Um shopping será aberto no Anil no ano que vem”, diz a propaganda, como se tudo fosse feito dentro da lei.
A Polícia Civil ainda investiga quem bancou a obra dos prédios que ruíram na Muzema. O único suspeito até agora, com base em depoimentos de moradores, é José Bezerra de Lira, o Zé do Rolo, que teria contratado pessoal e comprado material para a obra. O Ministério Público cita uma empresa, a Gaúcha New Construtora Consultoria Planejamento e Projetos, que teria vendido lotes no local. A escuridão que cerca o caso é mais um sinal retumbante do poder da quadrilha. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), a promotora Simone Sibilio não tem dúvida de que, como regra, há “cumplicidade entre agentes públicos e milícias” nos negócios imobiliários. “Prédios não ficam prontos da noite para o dia”, resume. Ou ficam e desmoronam.
Publicado em VEJA de 24 de abril de 2019, edição nº 2631
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