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Os enigmas no porão do navio que marcou a escravidão no Brasil

Um projeto destinado a encontrar os vestígios da embarcação é um modo de iluminar um abominável capítulo

Por Marília Monitchele Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 30 jul 2023, 08h00

Em Nova York, um destacamento de fuzileiros munidos de baionetas assumiu suas posições em torno de uma forca armada para a execução de penas capitais. Era uma sexta-feira, 21 de fevereiro de 1862, pouco antes do meio-dia. O rufar dos tambores anunciou a chegada do réu, que caminhava lentamente pelo pátio, com uma mortalha preta cobrindo o rosto. Apelidado de “Lucky Nat”, o corsário Nathaniel Gordon não parecia tão sortudo a caminho do cadafalso. Ele se preparava para entrar para a história como o único americano a ser condenado à morte por tráfico de escravos. Dez anos antes, Gordon desembarcara no Brasil a bordo do brigue Camargo. Trazia de Moçambique 500 africanos destinados ao trabalho nas lavouras de café. Como o abominável negócio tinha sido proibido em 1850, o corsário ateou fogo ao navio, de modo a apagar os rastros do crime, e escapou usando um disfarce peculiar: se esquivou das autoridades vestido de mulher, de saia e peruca.

O episódio, pouco conhecido, serviu como início do fim de um momento longo, cruel e vergonhoso da história da humanidade, a escravidão, na qual o Brasil tem constrangedor destaque. Agora, um projeto multinacional de pesquisa, o AfrOrigens, busca os vestígios da tristemente mítica embarcação no fundo do mar, no litoral próximo a Angra dos Reis, no estado do Rio de Janeiro. “O Camargo é a ponta do iceberg de um crime abominável, a diáspora forçada das populações africanas”, diz Luis Felipe Freire, arqueólogo e presidente do AfrOrigens. “Queremos que ele impulsione uma série de outras pesquisas similares na costa brasileira.”

A nau de Gordon atracou, em meados do século XIX, na propriedade do cafeicultor Joaquim José de Souza Breves, que fez parte de sua fortuna com o contrabando de seres humanos. Hoje, onde antes havia a Fazenda Santa Rita, há um núcleo de descendentes dos escravizados de Breves, a Comunidade Quilombola de Santa Rita do Bracuí. Alguns de seus membros têm aprendido as técnicas de mergulho científico para ajudar na exploração nas profundezas do mar. “A história do Camargo deveria estar nos livros didáticos de todas as escolas da região”, diz Marilda Francisco, líder comunitária do quilombo.

CHAGA - Desenho do alemão Rugendas: olhar forasteiro para o horror do tráfico
CHAGA - Desenho do alemão Rugendas: olhar forasteiro para o horror do tráfico (Josse/Leemage/AFP)

Ao encontro dos vestígios soma-­se uma série de outras iniciativas, entre as quais o plano de construção de um museu, em formato de navio, e a recuperação da biografia dos escravizados. Tenta-se, ainda, puxar o fio da meada de seus descendentes, empreitada complicada, dada a evidente escassez de informações. Ao cabo da aventura a ideia é lançar um documentário em torno de todo o processo, além de um longa-metragem de ficção. “Quando eu descobri essa história, e quanto ela era interessante e importante, comecei a acreditar que daria um bom filme para o Brasil”, diz Yuri Sanada, produtor cultural e vice-­presidente executivo do AfrOrigens. O documentário anda desde 2022, com registros permanentes das investidas submarinas e a participação ativa dos moradores da vizinhança. A produção do drama foi aprovada em maio passado e, com verba dos Estados Unidos, começará a ser rodada em breve.

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As cenas de escravidão no Brasil — derradeiro país do continente americano a abolir a escravatura, com a Lei Áurea, de 1888 — foram sempre tema de interesse e espanto da leva de artistas que por aqui desembarcaram no início do século XIX, como o francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848) e o alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858). Eles retrataram o cotidiano das liteiras e dos pelourinhos no Rio de Janeiro e o horror dos porões úmidos. O detalhamento da vida — vida? — no infame Camargo é como uma linha a prosseguir os registros daqueles pioneiros do traço, um modo de olhar para a chaga com ciência, caminho para impedir que a mácula se repita em roupagem moderna.

Não há dúvida: a escravidão é o fator mais determinante da formação da sociedade brasileira. Nenhum outro assunto é tão definidor para a construção de nossa identidade. Durante três séculos e meio, o Brasil foi o maior território escravista do hemisfério ocidental: recebeu quase 5 milhões de africanos submetidos ao cativeiro; algo em torno de 40% dos 12,5 milhões de embarcados à força para a América. O resultado do tráfico é sobejamente conhecido: ele foi responsável pelo nascimento de uma ideologia racista, que passou a associar a cor da pele à condição de escravo. Tirar o véu ao redor do Camargo e de Gordon, a missão do grupo coordenado pelo AfrOrigens, é a um só tempo fonte de conhecimento e instrumento para combater o absurdo e inaceitável preconceito. O jurista pernambucano Joaquim Nabuco (1849-1910), expoente do abolicionismo, insistia que não bastava proibir a escravidão. Era preciso pôr fim à sua herança. Como? Seguindo a deixa do alemão J.W. Goethe: “Escrever a história é um modo de livrar-se do passado”.

Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2023, edição nº 2852

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