Os bastidores da crise na Ancine após veto a filme inscrito para o Oscar
Censura de 'A Vida Invisível' e outros ataques ao cinema nacional despertam a reação de artistas e levam à queda de braço direito do secretário de Cultura
Melodrama que conta os descaminhos de duas irmãs no Rio de Janeiro suburbano dos anos 50, A Vida Invisível vem recebendo merecidos elogios dos críticos e foi indicado como produção brasileira para concorrer em 2020 ao Oscar de melhor filme estrangeiro, com boas chances de emplacar na seleção final. Em cartaz desde o fim de novembro nos cinemas nacionais, já foi visto por quase 80 000 pessoas. Numa triste ironia, quem ainda não pôde conferir a obra foi um grupo de funcionários da Ancine, justamente o órgão público encarregado de fomentar essa arte e proteger a indústria do audiovisual no país. Uma exibição especial do longa estava marcada para o último dia 12 no prédio da agência dentro de um programa de capacitação dos seus servidores, mas acabou cancelada de repente com a desculpa esfarrapada de que o projetor estava quebrado (o funcionário responsável pelo aparelho desmentiu a “pane”). Poucas semanas antes disso, já haviam sido retirados de lá cartazes de filmes nacionais expostos nos corredores do órgão, que foram levados para um depósito no Rio de Janeiro.
Os acontecimentos recentes na Ancine geraram forte e justa reação dentro da sociedade. No último dia 9, em um protesto original e contundente, a atriz Mariana Ximenes apresentou o Festival do Rio de cinema trajando uma roupa estampada com cartazes de filmes brasileiros. Revelado pelo site de VEJA, o caso da censura à exibição de A Vida Invisível tem as digitais da secretária do Audiovisual, Katiane de Fátima Gouvêa, demitida no dia 11 após o barulho que o ato causou. O bilhete azul foi assinado pelo superior da funcionária, o secretário de Cultura Roberto Alvim. Inconformada com a notícia, ela teve de ser carregada porta afora da sede da Ancine por seguranças. Testemunhas disseram a VEJA que Katiane teria chamado Alvim de “traidor”. A justificativa para a exoneração foram irregularidades que teria cometido ao se candidatar a deputada federal em 2018, quando saiu nas urnas como Katiane da Seda e recebeu 960 votos, sem conseguir se eleger. Katiane transferiu 25 600 reais do fundo eleitoral do PSD a uma empresa na qual é sócia com a mãe. Ela durou apenas duas semanas no cargo e acabou substituída pelo ex-secretário de Cultura da cidade de São Paulo André Sturm. Ganhou o emprego sem ter experiência no setor cultural e se converteu no braço direito do secretário Alvim. A relação entre eles foi construída ao longo deste ano. Antes de Alvim e Katiane assumirem as funções na Pasta, ele levou a Bolsonaro um documento formulado por um grupo conservador com a ajuda dela. No arquivo, entre outros pontos, havia acusações infundadas à Ancine por autorizar a captação de recursos para a nova temporada de uma série sobre Bruna Surfistinha. O presidente gostou tanto do conteúdo que passou dias xingando o filme sobre a ex-prostituta e falando em extinguir a agência caso não pudesse impor filtros à produção audiovisual.
Regular o conteúdo da indústria cinematográfica era tema recorrente nas reuniões que Katiane mantinha com servidores e agentes do mercado. Aos funcionários, ela apresentou o cartaz de A Rosa Azul de Novalis, uma produção sobre a sexualidade do ânus masculino exibida no Festival de Berlim, para apontar o grau de degeneração do cinema nacional. Nas reuniões com a indústria, Katiane atacou comédias como Os Farofeiros e Minha Mãe É uma Peça. Segundo ela, filmes desse tipo depreciam a imagem do Brasil no exterior e não melhoram a autoestima da população. Katiane ainda se mostrou disposta a rever as categorias indicativas ao tratar de Minha Mãe É uma Peça, estrelado pelo ator gay Paulo Gustavo. “Para nós, a família é constituída por um pai e uma mãe”, afirmou, segundo o relato de um representante do setor.
Katiane foi demitida da Secretaria de Cultura, mas deixou indicações em postos-chave da Pasta. É o caso do maestro Dante Mantovani, apontado por ela para a presidência da Funarte. Ele é aluno do polemista Olavo de Carvalho, diz acreditar no terraplanismo e que os Beatles surgiram para implantar o comunismo no Ocidente. Fazem parte também da lista de nomes chancelados por ela o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, cuja nomeação foi suspensa por ele ter dado declarações nas redes sociais como a de que a escravidão foi boa para os descendentes de negros, e o presidente da Biblioteca Nacional, Rafael Nogueira, que fez uma ovação a Olavo em sua posse.
O clima na Ancine não se apaziguou com a saída de Katiane. Agora, o ex-colunista social Edilásio Barra, o Tutuca, é quem provoca arrepios em servidores e executivos. Ele é superintendente da área que cuida de editais financiados pelo Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e aspira a um mandato de cinco anos na diretoria da agência. Partiu dele a iniciativa de recolher os cartazes dos filmes nacionais dos corredores. Em sua sala, trocou um pôster pela foto de Bolsonaro. Agentes do mercado que estiveram reunidos com Tutuca relatam que ele pretende acabar com programas de fomento, inclusive premiações, para centralizar essas decisões na cúpula da Ancine, seguindo os interesses manifestados pelo governo. “Vamos decidir o que filmar no Brasil”, afirmou, conforme o relato de um executivo da área do cinema.
É preocupante que pessoas sem a mínima qualificação sejam avalizadas pelo presidente para ocupar cargos que exigem conhecimento especializado, sob o risco de causar a paralisia de um setor importante. Um levantamento feito pela Motion Picture Association (MPA) mostra que o audiovisual injetou 23 bilhões de reais na economia brasileira em 2016, o equivalente a 0,57% do PIB do país naquele ano — número maior que o movimentado pela indústria têxtil. Ainda mais preocupante é o fato de a censura de produções artísticas ser algo tão bem aceito no governo. Comportamentos expressos por Katiane e Tutuca estão alinhados com o discurso do secretário Roberto Alvim, um dramaturgo que chamou a atriz Fernanda Montenegro de “podre” e “mentirosa” e defendeu a convocação de artistas conservadores para montar uma “máquina de guerra cultural”.
Intervenções de governos na produção cinematográfica eram muito comuns na época da Guerra Fria, quando Estados Unidos e União Soviética influenciavam o roteiro de alguns filmes com o objetivo de conquistar corações e mentes. Nos anos 50, a CIA, o serviço secreto americano, chegou a mudar o fim de longas inspirados nos livros 1984 e Revolução dos Bichos, ambos de George Orwell, para enfatizar o tom anticomunista. Esse tipo de aparelhamento, que parecia coisa do passado, é um fantasma real que começa a ressurgir no Brasil, com várias mensagens claras de que há um movimento para tirar de cena as vozes dissonantes. Diretor de A Vida Invisível, Karim Aïnouz diz que uma “guerra ideológica cega” não trará nada além de prejuízos ao Brasil: “Em vez de o governo apoiar uma indústria que dá retorno financeiro e representa o país no mundo, decide nos boicotar”. Katiene, a breve, queimou o filme ao protagonizar um ato de censura que pegou mal até para os padrões radicais do bolsonarismo. Mas o drama da política cultural brasileira continua em cartaz.
Publicado em VEJA de 18 de dezembro de 2019, edição nº 2665