Relâmpago: Assine Digital Completo por 2,99

O país do prende e solta: onda de violência reacende debate sobre endurecimento das leis

Crimes cometidos por bandidos com várias passagens pela cadeia esquentam discussão, mas o problema não vai se resolver apenas com o punitivismo

Por Bruno Caniato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Isabella Alonso Panho Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 abr 2025, 13h02 - Publicado em 4 abr 2025, 06h00

Era manhã de 21 de setembro de 2024, um sábado, na Rua Caio Graco, Zona Oeste de São Paulo, quando o delegado da Polícia Civil Mauro Guimarães Soares e sua esposa foram abordados por um assaltante armado. Ao reagir, o policial levou dois tiros no peito, foi socorrido, mas morreu, aos 59 anos, no Hospital das Clínicas. Episódios como esse, cada vez mais frequentes, chocam uma sociedade já bastante assustada e chamam atenção pelo histórico do responsável pelos disparos. Enzo Wagner Lima Campos, de 25 anos, já havia sido preso por roubo, lesão corporal e posse ilegal de arma e respondia em liberdade na data do crime, graças a uma decisão em que o juiz levou em conta “a boa conduta carcerária”. Mais recentemente, em fevereiro deste ano, o ciclista Vitor Medrado, 46, morreu baleado num bairro nobre da capital paulista antes de entregar seu celular a ladrões — um deles tinha passagem por tráfico de drogas e receptação (veja a infografia). As ocorrências brutais, além de escancararem a crescente crise de segurança, reacendem o debate sobre os gargalos no sistema de justiça do país que mantêm soltos criminosos fichados e até condenados por crimes graves.

arte perigo

O tema ganhou tração política na esteira de uma polêmica declaração do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski. “A polícia prende mal, e o Judiciário é obrigado a soltar”, disse em 19 de março, enquanto fazia uma defesa da PEC da Segurança, proposta do governo Lula que busca mostrar alguma iniciativa de uma gestão perdida nessa questão. A reação foi imediata. A Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal (ADPF) afirmou que “críticas públicas não respaldadas em evidências e dados concretos enfraquecem o esforço conjunto de enfrentamento à criminalidade”. A oposição viu mais um passo em falso do governo em um tema sensível e foi ao ataque. “A polícia prende, a Justiça solta. Em vez de proteger pessoas de bem, concede regalias a criminosos. É revoltante ver reincidentes nas ruas por saidinhas e benefícios inaceitáveis”, disse o governador de Minas Gerais, Romeu Zema. A repercussão foi tamanha que o Ministério da Justiça emitiu na sequência uma nota explicando que o chefe da pasta teria apenas atribuído a soltura de presos a uma “falta de compartilhamento de informações” entre instituições sobre, por exemplo, antecedentes dos suspeitos.

CRÍTICA - Suspeito é detido em São Paulo: agentes reclamam do desestímulo ao trabalho policial
CRÍTICA - Suspeito é detido em São Paulo: agentes reclamam do desestímulo ao trabalho policial (SSP-SP/.)

A sensação de que há pouco rigor no cumprimento efetivo das prisões encontra respaldo nos números. Quatro em cada dez pessoas presas no Brasil são libertadas já na audiência de custódia, apontada como a principal “porta giratória” do sistema criminal (veja o quadro). Implementada em 2015 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para reduzir o total de encarcerados provisórios, o modelo prevê que qualquer preso seja apresentado em até 24 horas a um juiz. Na sessão, composta por um magistrado de primeira instância, Ministério Público e Defensoria Pública, são avaliados critérios como gravidade do crime, risco de fuga, circunstâncias da abordagem policial e ocorrência de maus-tratos ou tortura pelos agentes. Em dez anos, foram feitos 2,2 milhões de audiências. Em cerca de 40% dos casos os detidos acabaram sendo liberados para voltar às ruas. Inegavelmente, é uma porta aberta que ajuda a realimentar a roda do crime. Cerca de 20% dos presos voltam à cadeia depois de um ano da primeira detenção.

PROBLEMA - Audiência de custódia: quatro em cada dez presos são liberados
PROBLEMA - Audiência de custódia: quatro em cada dez presos são liberados (Luiz Silveira/Agência CNJ/.)
Continua após a publicidade

São estatísticas como essa que geram entre as forças policiais a sensação de “enxugar gelo”. Nesse segmento, prevalece a visão de que o “prende e solta” é resultado de uma lei criminal branda e pouco eficiente, que oferece excesso de benefícios e escassez de punição aos infratores. Além das audiências de custódia, a insatisfação se estende às “saidinhas” para presos e às regras de cumprimento de pena — por exemplo, o regime fechado só é aplicável a condenados a pelo menos oito anos de prisão, e um criminoso não reincidente condenado por crime violento pode pedir progressão ao semiaberto após cumprir metade da sentença. “A percepção geral é de que muitas pessoas são liberadas prematuramente, o que gera sensação de insegurança para a população e desestímulo para os policiais que estão enfrentando a criminalidade”, avalia Luciano Leiro, presidente da ADPF. Para o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, que defende o fim das sessões de custódia, a legislação penal é pouco rígida e contribui para que o criminoso tenha o sentimento de impunidade. “A leniência na interpretação da lei e a benevolência de alguns magistrados tornam o custo do crime muito baixo no Brasil”, afirma.

CONTAGEM - “Prisômetro” em São Paulo: país tem quase 900 000 encarcerados
CONTAGEM - “Prisômetro” em São Paulo: país tem quase 900 000 encarcerados (Paulo Pinto/Agência Brasil)

Os juízes, que são os responsáveis por mandar prender e mandar soltar, têm, claro, outra visão. Eles concordam com a crítica de Lewandowski, dizendo que boa parte das solturas ocorrem por falhas no trabalho policial, como ausência de elementos para justificar o flagrante e falta de provas. “A percepção de que a ‘Justiça solta demais’ decorre também, muitas vezes, da visibilidade pontual de decisões envolvendo casos emblemáticos ou pessoas politicamente expostas”, acrescenta Caio Marinho, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

Uma questão levantada em meio ao debate é que talvez a culpa não seja nem dos magistrados nem dos policiais, mas da lei. E há quem esteja se mexendo para mudar as regras. No Congresso tramitam propostas que elevam o rigor com quem é reincidente e dificultam a soltura nas audiências de custódia. Uma das mais avançadas, o PL 226/2024 foi apresentado pelo hoje ministro do Supremo Flávio Dino quando ele era senador. A ideia é que, na audiência, a prisão em flagrante seja convertida em preventiva (podendo durar a investigação inteira) se houver sinal de reincidência, se o preso já tiver passado por outras audiências ou se estiver respondendo a investigações. Hoje, o que se exige é a existência de condenação criminal transitada em julgado, ou seja, sem chance de recurso. O PL passou no Senado em agosto, com relatoria de Sergio Moro (União Brasil-PR), e agora espera relator na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. “Em todo lugar que vamos, seja nas capitais, seja no interior, a grande reclamação é a de que as audiências de custódia se tornaram uma porta giratória”, diz Moro, que tem um projeto próprio que impõe muitos requisitos para a liberdade ser concedida. “Casos de soltura errada acabam contaminando o instituto. É urgente uma reforma”, diz o ex-juiz. Há projetos mais duros, como o do senador Angelo Coronel (PSD-­BA), que torna a audiência um benefício a ser concedido apenas a quem tem “bons antecedentes”. “Reclamava-se que os pedidos de liberdade provisória demoravam muito a ser apreciados. Mas isso pode ser feito independente da audiência de custódia”, afirma. Outro projeto, do deputado Fernando Rodolfo (PL-PE), acaba com a imposição de que a prisão passe a ser ilegal se não houver a apresentação do preso ao juiz em 24 horas.

Continua após a publicidade

Alvo principal das propostas de mudanças, o ingresso da audiência de custódia na legislação brasileira completou uma década em fevereiro e se deu por obediência a tratados internacionais dos quais o país é signatário: o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos. Assim, não é simples acabar com esse instituto, porque isso deixaria o país na mira de sanções internacionais. Signatários desses tratados, Colômbia, Argentina, Chile e Uruguai também têm previsão legal para a audiência de custódia. Nos Estados Unidos, vários estados obrigam a que os presos passem pela avaliação do juiz, em prazos variados, dependendo das leis locais. “É um direito fundamental em um sistema de Justiça criminal marcado por letalidade, tortura, racismo e arbitrariedade. Ela (a audiência de custódia) aumenta o controle sobre a atividade policial”, diz Mauricio Dieter, professor de direito penal e criminologia da USP.

CRÍTICA - Derrite: leniência e benevolência tornam o crime muito barato no país
CRÍTICA - Derrite: leniência e benevolência tornam o crime muito barato no país (Danilo Verpa/Folhapress/.)

Segundo especialistas, o esforço para mudar a lei com o objetivo de manter os criminosos na cadeia precisa vir acompanhado de uma discussão mais ampla sobre a política carcerária no país. Apesar da impressão generalizada de “excesso de soltura”, os dados indicam que as cadeias brasileiras estão cada vez mais, e não menos, lotadas. Com quase 889 000 pessoas cumprindo pena, o país tem a terceira maior população carcerária do planeta. Ela cresceu quase 30% nos últimos oito anos, num ritmo não acompanhado por investimentos proporcionais na infraestrutura. Por isso, faltam 174 000 vagas. O resultado é um sistema caro e longe de oferecer condições ideais para a recuperação. Na prática, passou a funcionar como “oficinas do crime” para o recrutamento de soldados para facções como o PCC. “A prisão precisa cumprir o duplo caráter da pena, que é a privação da liberdade e a ressocialização”, diz o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), que defende mudanças nas leis, a reforma do sistema prisional e ajustes nas audiências de custódia. “São recorrentes as prisões em flagrante anuladas por juízes, mesmo quando há apreensão de drogas e armas”, diz.

Continua após a publicidade
LINHA DURA - Presos em El Salvador: modelo virou inspiração para a direita
LINHA DURA - Presos em El Salvador: modelo virou inspiração para a direita (Salvadoran Government/Getty Images)

O Brasil não está sozinho nesse tipo de debate e mesmo países desenvolvidos enfrentam problemas com índices de reincidência preocupantes. Na pacata e civilizada Noruega, por exemplo, a taxa é de 18% em dois anos após a primeira prisão. A singularidade do caso nacional é a soma de problemas em uma escala cada vez mais preocupante (polícia mal treinada, legislação desatualizada, juízes benevolentes e poderio crescente do crime organizado). No modelo atual, o risco de se ater à letra fria da lei sem levar em conta a realidade das ruas é criar episódios que colocam em risco a credibilidade do sistema. Um exemplo já clássico é o de André Oliveira Macedo, o André do Rap. Um dos chefões do PCC, ele é apontado como conexão da falange brasileira com máfias europeias, principalmente italianas, na complexa rede internacional de venda de cocaína e outras drogas criada pela facção criminosa. Em outubro de 2020, durante um plantão, o ministro Marco Aurélio Mello, do STF, deu liminar para a soltura, alegando que ele estava preso havia tempo demais (setembro de 2019) sem sentença condenatória definitiva, excedendo o limite de detenção previsto na lei para prisão preventiva.

POLÊMICA - Lewandowski: declaração do ministro de que “a polícia prende mal” virou arma para a oposição ao governo
POLÊMICA - Lewandowski: declaração do ministro de que “a polícia prende mal” virou arma para a oposição ao governo (Bruno Peres/Agência Brasil)

Resultado: André do Rap saiu andando pela porta da frente do presídio em uma manhã de sábado. Quando a liminar foi suspensa, à tarde, pelo presidente da Corte, Luiz Fux, o criminoso já havia desaparecido. Procurado até pela Interpol, está há quatro anos foragido. Embora beneficiado pela lei, o bandido não cumpriu o que determinou Marco Aurélio. “Advirtam-no da necessidade de permanecer em residência indicada ao Juízo, atendendo aos chamados judiciais, de informar possível transferência e de adotar a postura que se aguarda do cidadão integrado à sociedade”, escreveu o ministro na decisão de soltura.

Continua após a publicidade
LIVRE - André do Rap: beneficiado pela lei, chefão do PCC desapareceu
LIVRE - André do Rap: beneficiado pela lei, chefão do PCC desapareceu (./Reprodução)

Problema complexo, que suscita pontos de vista variados sobre como enfrentá-lo, a criminalidade torna-se a cada dia um pesadelo maior na vida dos brasileiros. Pesquisa divulgada pela Quaest, na quarta 2, mostra a violência no topo das preocupações dos eleitores, com 29% — acima de questões sociais (23%), economia (19%), saúde (12%), corrupção (10%) e educação (7%). Nesse cenário, fica evidente que o assunto será objeto de exploração política nas eleições de 2026, porque é um tema que não só rende muitos votos, mas que precisa efetivamente ser discutido. O risco é a radicalização do debate, o que sempre é meio caminho andado para o fracasso. Não são poucos os políticos, especialmente de direita, que elevaram a ídolo o polêmico presidente de El Salvador, Nayib Bukele, que transformou as prisões do país em exemplo de tratamento rigoroso — e quase sempre desumano — aos detentos. O caminho para diminuir a insegurança do brasileiro passa por enfrentar a questão de forma efetiva, com diagnósticos corretos, boas iniciativas, investimentos e a necessária rediscussão das leis, das práticas policiais, do sistema de justiça e da política carcerária — de preferência, sem ideias preconcebidas e sem fazer de conta que o problema do “prende e solta” não existe.

Publicado em VEJA de 4 de abril de 2025, edição nº 2938

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

ECONOMIZE ATÉ 82% OFF

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*
Apenas 2,99/mês

Revista em Casa + Digital Completo

Receba 4 revistas de Veja no mês, além de todos os benefícios do plano Digital Completo (cada revista sai por menos de R$ 9)
A partir de 35,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
Pagamento único anual de R$35,88, equivalente a R$ 2,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.