O jogo entre Poderes nos bastidores das indicações de Dino e Gonet
A escolha do novo ministro do STF e do novo PGR acontece em meio a uma delicada reacomodação de forças entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário
Nos quatro anos de governo Bolsonaro, os Poderes da República experimentaram momentos de alta tensão. No papel de político antissistema, uma caracterização que tem feito eclodir personagens singulares em várias partes do mundo, o ex-presidente se concentrou em medir forças com o Congresso e com o Supremo Tribunal Federal. No caso do STF, os embates incluíram atos de hostilidade com a participação de grupos que defendiam, entre outros absurdos, o fechamento da instituição — manifestações que contavam com a simpatia de pessoas importantes do governo como um todo, especialmente os militares. Em relação ao Parlamento, Bolsonaro seguiu uma outra estratégia. Para garantir o avanço de seus projetos, o mínimo de estabilidade e afastar a ameaça de um eventual pedido de impeachment, o presidente abriu mão de algumas prerrogativas do Executivo, entregando a deputados e senadores cargos na administração federal e o controle de bilionárias verbas do Orçamento. Esses eventos, combinados com outras quimeras bolsonaristas, resultaram num perigoso desarranjo institucional.
O Supremo Tribunal, por exemplo, foi acusado de exorbitar de algumas de suas atribuições e avançar sobre outras que seriam exclusivas do Executivo, o que teria criado dificuldades para o governo Bolsonaro. O Congresso, aproveitando-se dessa conflagração, teria emparedado o presidente da República e, em troca de apoio, foi autorizado a usar e abusar de dinheiro dos cofres públicos. Nenhuma dessas duas narrativas é verdadeira, mas também não se pode dizer que ambas são absolutamente falsas. O fato é que elas se cristalizaram no imaginário de alguns setores da sociedade e acabaram por impulsionar o terremoto golpista do dia 8 de janeiro, o ápice do desarranjo institucional. Desde então, com um novo mandatário no Palácio do Planalto, os poderes buscam delimitar com mais clareza as áreas de atuação de cada um — movimentos simultâneos que têm provocado focos de tensão, pequenos tremores e gestos conciliatórios. Na segunda-feira 27, em um desses movimentos, o presidente Lula anunciou a indicação do ministro da Justiça Flávio Dino para o STF e do subprocurador Paulo Gonet para o cargo de procurador-geral da República (PGR).
Os dois indicados foram selecionados a dedo e são parte de uma estratégia de reposicionamento do Executivo em relação ao Judiciário. Flávio Dino é um juiz de carreira que trocou a magistratura pela política há mais de uma década. Ele tem mais de 35 anos, notório saber jurídico e reputação ilibada — os três requisitos exigidos pela Constituição para os candidatos a ministro do Supremo. Desde que assumiu o governo, Lula avisou que suas opções para o STF precisariam atender também a um quarto requisito: a proximidade com ele — ou, nas palavras de seus auxiliares, “alguém para quem o presidente pudesse ligar quando necessário”. A metáfora reflete a mágoa de Lula em relação às escolhas do passado. Nos dois primeiros mandatos, ele indicou nada menos que oito ministros ao Supremo. À exceção de um, Ricardo Lewandowski, o mandatário cultiva diferentes níveis de arrependimento em relação aos demais, em especial pelos que referendaram a decisão que o fez passar 580 dias na prisão, sob a acusação de corrupção e lavagem de dinheiro. O presidente, por óbvio, quer reduzir a possibilidade de outros reveses de agora em diante.
A estratégia de Lula para ampliar o raio de influência do Executivo sobre o Judiciário começou a ser colocada em prática com a indicação de Cristiano Zanin para a vaga que surgiu no STF no início do ano. O presidente não hesitou em enfrentar o desgaste político de bancar a candidatura de seu advogado pessoal, que acabou aprovado pelo Senado sem maiores turbulências. O mesmo não deve acontecer com Flávio Dino. O atual ministro da Justiça é mais que um simples aliado histórico do mandatário. No governo, ele se destacou pelas muitas polêmicas nas quais se envolveu. Alvo predileto dos bolsonaristas, criou atritos com militares de alta patente, se estranhou com o deputado Arthur Lira, o poderoso presidente da Câmara, deu as costas para petistas importantes e enfileirou embates pesados com um sem-número de parlamentares de oposição, o que pode — e certamente vai — lhe render dificuldades durante a sabatina no Senado, onde são necessários 41 votos para ter o nome aprovado.
O ministro, aliás, foi nomeado num momento em que o Legislativo e o Judiciário se estranham. Na semana passada, o Senado aprovou um projeto que restringe as decisões monocráticas do STF. O presidente da Casa, senador Rodrigo Pacheco, também anunciou que irão a votação medidas que estabelecem mandatos para os magistrados e aumento da idade mínima para os próximos candidatos ao posto. Hoje, o ministro permanece na função até completar 75 anos. O Supremo reagiu. “Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal enfrentou o negacionismo em relação à pandemia, salvando milhares de vidas, o negacionismo ambiental, bem como funcionou como um dique de resistência contra o avanço autoritário. Por esse papel, o tribunal sofreu ataques verbais e a criminosa invasão física que vandalizou as instalações da Corte. O tribunal vê com preocupação avanços legislativos sobre sua atuação”, protestou Luís Roberto Barroso, presidente da Corte. O decano, ministro Gilmar Mendes, foi um pouco menos diplomático: “Os autores desta empreitada começaram-na travestidos de estadistas presuntivos e a encerraram melancolicamente como inequívocos pigmeus morais”, disse.
A retórica menos polida ainda está influenciada pelas distorções e desconfianças produzidas no passado recente. Os parlamentares reclamam há algum tempo de intromissões do Judiciário em assuntos que seriam de competência exclusiva do Legislativo — legalização do aborto, descriminalização da maconha para uso pessoal e outros assuntos. Os ministros do STF, por sua vez, consideram as medidas em tramitação no Congresso como um avanço indevido do Legislativo sobre os seus domínios. Para Rodrigo Pacheco, o Senado está apenas aprimorando a legislação. “Estamos aqui provendo uma busca de equilíbrio entre os poderes, repito, para que uma lei votada no Congresso Nacional, que é formado por representantes do povo brasileiro, não seja desconstituída por ato unilateral de uma pessoa que, por mais importância que tenha, como um ministro do Supremo Tribunal Federal, não se sobrepõe ao Congresso, ao presidente da República e não se sobrepõe ao colegiado de sua própria Casa”, disse, acrescentando que as instituições “não são intocáveis”.
Virtual candidato ao governo de Minas Gerais em 2026, o senador conhece as regras do jogo. Em dobradinha com o presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Davi Alcolumbre (União-AP), que planeja se eleger presidente do Congresso em 2025, os dois trabalham para aumentar os respectivos cacifes eleitorais. Ao apoiar medidas de “enfrentamento” com o STF, Pacheco acena ao eleitorado conservador de seu estado e, de quebra, ainda ganha créditos com a bancada mais à direita do Congresso. Alcolumbre, por sua vez, ora faz movimentos em direção aos oposicionistas, como no projeto restringindo as decisões monocráticas, que foi aprovado em segundos na CCJ, ora por uma composição com os governistas, quando ditou os rumos da tramitação da reforma tributária. Ao lado e com o aval de Pacheco, ele também acelerou a sabatina de Flávio Dino e Paulo Gonet, ambas marcadas para o próximo dia 13 de dezembro, exatamente como queriam o Executivo e o Judiciário, para evitar o desgaste dos indicados.
Em paralelo, a indicação do procurador-geral Paulo Gonet foi uma peça importantíssima nesse grande jogo de poder. É atribuição dele propor investigações e atuar em ações que envolvem altas autoridades. No passado recente, os ocupantes do cargo oscilaram entre o ativismo desmedido e a absoluta inapetência. Rodrigo Janot, que comandou a Operação Lava-Jato, denunciou Lula e quatro ex-presidentes da República, dezenas de políticos e empresários, mas, no fim, os processos, em sua maioria, resultaram em absolutamente nada. Augusto Aras, que ocupou o posto até setembro deste ano, arquivou praticamente todos os pedidos para investigar políticos, incluindo o então presidente Jair Bolsonaro. Lula não queria ninguém parecido com Janot. Nas audiências em que o presidente sabatinou os aspirantes, Paulo Gonet foi o que mais agradou ao se definir como um “legalista que não se prestará a denúncias aventureiras ou à leniência com práticas criminosas”. O escolhido contou com o apoio decisivo dos ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, que foram comunicados das escolhas pelo próprio Lula quatro dias antes de elas serem oficialmente anunciadas — uma deferência aos magistrados e mais um gesto ao Judiciário.
A Constituição estabelece que os poderes da República devem ser independentes e harmônicos entre si. Nos anos Bolsonaro, foram muitas ameaças ao estado democrático de direito — o modelo desenhado pelo filósofo francês Charles Montesquieu no século XVIII como alternativa às monarquias absolutistas. Na época, cabia aos reis elaborar, interpretar e executar as leis. Montesquieu propôs a separação do poder em três esferas: Executivo, Legislativo e Judiciário. Cada um com suas atribuições bem definidas, um fiscalizando o outro. Com algumas variações, esse modelo se consagrou na formação dos Estados Unidos da América, em 1776, e prevalece hoje na maioria dos países ocidentais, incluindo o Brasil (hoje num processo de reacomodação dessas forças). “Tudo isso faz parte de um rearranjo depois que tivemos um governo em que o presidente da República utilizou como plataforma política o combate ao establishment”, diz o professor do Insper Luiz Fernando Esteves. “O que estamos vendo agora é um retorno à institucionalidade”, afirma. Dentro de um jogo democrático, a busca do equilíbrio cria atritos e gera tensões, mas é imprescindível para o bom funcionamento de um país.
Publicado em VEJA de 1º de dezembro de 2023, edição nº 2870