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O drama dos moradores da pequena Muçum, marco zero da tragédia gaúcha

Nos cem dias do maior desastre climático do Rio Grande do Sul, reportagem de VEJA ouve relatos de pessoas atingidas pelos temporais que destruíram a cidade

Por Luiz Antônio Araujo, em Muçum (RS)
Atualizado em 12 ago 2024, 02h52 - Publicado em 10 ago 2024, 13h28

Aos 76 anos, a viúva aposentada Orildes Maria Feldkircher às vezes esquece nomes. Lembra com profusão de detalhes, porém, do dia em que o pequeno município de Muçum saiu dos roteiros turísticos da região de colonização italiana do Rio Grande do Sul para entrar no mapa-múndi da catástrofe climática. “Orildes, vem ver onde é que está a água”, gritou-lhe a vizinha Beatriz Pietta por volta de 18h30min, por cima da cerca de arame que separa as casas de ambas. Era o Rio Taquari, que em tempos normais corre a algumas dezenas de metros da via, e agora ameaçava esgueirar-se quintais adentro. Beatriz, garante Orildes, era “mais do que irmã”. Diagnosticada com um tumor, cerca de dois anos antes, confessou à vizinha que preferia morrer a se submeter ao tratamento. Orildes confortou-a: “Se Deus dá a vida para a gente, é para a gente lutar, não para desistir”. O conselho foi seguido, e Bea venceu o câncer.

Muçum depois das enchentes
⁠Orildes Maria Tocolini Feldkicher, aposentada, que morava ao lado de casal morto em enchente: ela e a vizinha eram como irmãs e iam juntas à horta que divide as casas (Carlos Macedo/VEJA)

Naquela segunda-feira, 4 de setembro, Muçum havia amanhecido em meio a rumores de enchente iminente. O que ninguém previu foi a velocidade do avanço da água. Em poucos minutos, as casas de Orildes, no nº 219, e de Beatriz, no nº 246 da Rua José de Anchieta, no bairro São José, estavam ilhadas. “Era como se o rio estivesse perseguindo a gente”, relata Orildes. Às 20h, sem luz e com água pelos joelhos, ela, uma nora e três vizinhos não tiveram remédio a não ser refugiar-se no forro da casa através de um alçapão.

Orildes havia oferecido abrigo a Beatriz e ao marido dela, Álvaro Pietta. O casal agradeceu, mas explicou que aguardaria dois filhos e um empregado. Em meio à enxurrada montante e à escuridão, os dois grupos passaram a comunicar-se aos berros. “Sobe para o sótão!”, gritava Juliano Boaro, um dos vizinhos acolhidos por Orildes. “Não dá, o teto é de gesso”, respondiam do outro lado da cerca. Minutos depois, o diálogo deu lugar aos brados desesperados dos Pietta. “Pelo amor de Deus, nós estamos se afogando”, gritavam. Perto da meia-noite, sobreveio um silêncio aterrorizante. Semanas depois, voluntários que foram ao nº 243 para limpar a lama e os destroços notaram marcas de mãos que haviam tentado sem sucesso romper o gesso do teto.

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A população de Muçum mal tinha percebido, mas a roda do infortúnio começara a girar doze dias antes, em 23 de agosto. Naquele dia, o pior temporal de granizo da história de Muçum destelhou quase mil casas, danificou todos os prédios públicos e provocou a suspensão das aulas. Em 4 de setembro, foi um ciclone extratropical que fez o Taquari inundar 80% da superfície da cidade. Entre os 18 mortos identificados, estavam quatro ocupantes da casa vizinha à de Orildes Feldkircher. Dois corpos de moradores ainda não foram encontrados – um deles é o de Bea Pietta. Em novembro, uma nova cheia atingiu 70% da área. Finalmente, a partir de 29 de abril deste ano, o Taquari e seu afluente Guaporé avançaram sobre áreas mais centrais e elevadas, sem poupar nem mesmo a prefeitura, situada a 300 metros da margem do primeiro.

Muçum
Vista de Muçum, no Vale do Taquari (RS): pequena cidade de 4.600 habirantes foi varrida por temporais e cheias em série desde agosto de 2023 (Carlos Macedo/VEJA)

Passados cem dias da tragédia mais recente, Muçum convive com bairros arrasados, lojas fechadas e escolas em ruínas. No interior, estradas inteiras foram destruídas. A sucessão de eventos extremos levou cerca de mil dos 4,6 mil habitantes a deixar a cidade. Caminhões e caçambas ainda recolhem resíduos nas ruas. Nas encostas de até 500 metros de altura que circundam o centro, cicatrizes cor de barro riscam o verde da vegetação. Na praça central, varrida pela última inundação, um casal de urubus alojou-se no forro de um prédio abandonado e, de tempos em tempos, pousa nos canteiros em busca de alimento.

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Com 4.600 habitantes em 2022, Muçum é a porta de entrada leste da microrregião do Vale do Taquari. A paisagem exuberante é um ativo turístico local. Situado no fundo de um cânion da Serra Geral, no ponto em que o Taquari efetua uma curva de quase 360º em direção ao sul, pontilhada de praias de cascalho e corredeiras, o município ostenta o título de Princesa das Pontes. A mais vistosa é a Ponte Rodoferroviária Brochado da Rocha, um colosso de 289 metros de extensão e sete arcos, que liga Muçum ao município de Roca Sales. Em setembro, Eurico da Costa, 43 anos, que vivia a poucos metros da ponte, na cidade vizinha, viu parte da estrutura ser destruída pela correnteza. De sua casa não ficou vestígio. “Nós, em casa, (o rio) nunca tinha pegado. Nunca foi assim. É o fim dos tempos”, relata o autônomo, que passou três meses em um salão comunitário convertido em abrigo, ao lado da ex-mulher e de quatro filhos.

MUÇUM,RS, BRASIL - 01/08/2024 - Reportagem conta como está a reconstrução na pacata cidade no Vale do Taquari, que ficou conhecida depois que inúmeras enchentes, desde setembro de 2023, destruíram parte da cidade. Na foto, o casal Ires e Jandir Cimarosti na casa em que moravam nas margens do Rio Taquari e hoje está em reforma. (FOTO: Carlos Macedo/Veja).
O casal Ires e Jandir Cimarosti na casa em que moravam nas margens do Rio Taquari e que está em reforma: mil moradores deixaram Muçum (Carlos Macedo/VEJA)

O casal Ires e Jandir Cimarosti, ela com 68 anos e ele com 72, foi obrigado a deixar com água pelo pescoço sua casa na Rua Silvio Sanson, 620, em Muçum, a uma distância de 15 metros do rio. Os idosos alojaram-se em uma academia de ginástica num ponto mais alto da rua, com outras 70 pessoas, mas, com o aumento do volume de água no entorno, o imóvel também ficou isolado. “A sorte nossa foi que estourou a ponte. Se não tivesse estourado a ponte, era certo que nós iríamos morrer todo mundo afogado”, garante Ires, que convalescia de uma cirurgia cardíaca realizada 10 dias antes.

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Se quem vive perto do rio foi surpreendido, entre os mais distantes houve puro pânico. A comerciante Marivone Bernardi de Melo, 29 anos, tinha aberto uma loja de roupas havia três anos na Rua Barão do Rio Branco. “Antes, vinha água, mas calmo. E não era toda a cidade, era mais quem morava mais perto (do rio). Mas não aqui no centro”, recorda-se. Ela relutou em fechar as portas até por volta de 15h do dia 4 de setembro. Daquele momento em diante, o nível do rio passou a subir a uma velocidade inédita. “Em uma hora a água avançou 2 metros, entende? Aí foi quando o pessoal realmente se apavorou, todo mundo tirando as coisas. Era um tumulto só”, diz Marivone. Com perda total, Marivone levou três meses para reabrir a loja, desta vez em ponto mais afastado do rio.

Muçum
Marivone Bernardi de Melo, dona da loja Ramari Store, recém-reformada, em Muçum: na vitrine um cartaz cobra ações dos governantes (Carlos Macedo/VEJA)

O município ficou sem luz, internet e ligação por terra com o restante do Estado em razão de bloqueios da RS-129. Algumas vítimas tiveram de ser sepultadas em Vespasiano Correa, distante 14 quilômetros, uma vez que a correnteza havia atingido severamente o cemitério local. Ressabiada, a população atendeu aos primeiros alertas da prefeitura e da Defesa Civil quando o Taquari voltou a inundar a região, em novembro, sem atingir as marcas de dois meses antes. Dessa vez, não houve mortes.

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Quando o Taquari desatou sua fúria sobre Muçum pela terceira vez, em 29 de abril, formou com o afluente Guaporé um torniquete de água em torno da área central. Vias, praças e prédios públicos submergiram em uma torrente de ondas barrentas. Mais uma vez, o sistema de monitoramento funcionou, e não foram registradas vítimas. Uma nova leva de moradores, porém, foi arrastada para o desastre. A professora estadual aposentada Ana Salete Zilio Lucca, 64 anos, estava em viagem de lazer com familiares em maio. No interior da ótica de sua propriedade, no centro, a água atingiu dois metros de altura. À frente de um grupo de moradores de cerca de 70 integrantes em Muçum e municípios vizinhos, Ana Salete adotou o desassoreamento (retirada de areia e cascalho do rio) como bandeira. “Quem é que não entende que, se o rio está com a calha elevada, não há espaço para a água?”, indaga.

MUÇUM,RS, BRASIL - 01/08/2024 - Reportagem conta como está a reconstrução na pacata cidade no Vale do Taquari, que ficou conhecida depois que inúmeras enchentes, desde setembro de 2023, destruíram parte da cidade. Na foto, o prefeito Mateus Trojan e ao fundo um quadro com foto aérea do município em que mostra as partes altas onde novas contruções poderão ser erquidas para subistituir os locais que foram devastados. (FOTO: Carlos Macedo/Veja).
O prefeito de Muçum, Mateus Trojan (MDB), mostra em foto aérea do município as partes altas onde novas contruções poderão ser erguidas após as destruições (Carlos Macedo/VEJA)

Aos 29 anos, o prefeito Mateus Trojan (MDB) enfrenta o desafio de convencer a população a transferir uma porção inteira da cidade para longe das áreas de risco. Ele estima que seja necessário reconstruir 276 moradias, das quais 233 arrasadas em setembro e 43 em maio. Em outros 13 terrenos desapropriados pelo poder público, serão instaladas 10 empresas que, na ausência de incentivo para operar, deixariam o município. A quem deseja sair de Muçum, o prefeito diz: “A gente deve, sim, continuar acreditando na cidade porque ela tem vários pontos positivos, como qualidade de vida e serviços essenciais”.

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De todos os setores, o que mais sofreu no último ano foram as escolas. O granizo de agosto deixou as instituições destelhadas, e a enchente de setembro surpreendeu-as dois dias depois do reinício das aulas, com tetos de lona. Entre cinco escolas municipais, duas de educação infantil, Castelo Branco e Família Feliz, e uma pré-escola, Alternativo, foram severamente atingidas. “Tivemos de botar no lixo travesseiros, cobertinhas das crianças, porque nem isso deu tempo de tirar”, desabafa a secretária municipal de Educação, Cultura, Turismo, Esporte e Lazer, Jucéli Baldasso, a respeito das duas primeiras. Para o Alternativo, a única solução é a demolição. De outubro a dezembro de 2023, o município deixou de oferecer turno integral. Cerca de 50 alunos não voltaram às aulas, presumivelmente por ter deixado a cidade.

Com a cabeça coberta por um chapéu de palha, o guarda municipal Jairo Marobin, 56 anos, caminha entre os destroços do cemitério de Muçum com um sorriso no rosto. Natural de Linha Alegre, no interior do município, ele vive em Porto Alegre, mas, a caminho da pequena propriedade dos irmãos, distante 15 quilômetros por estrada de chão do centro, não resiste em contemplar o que sobrou do local. “Se não fosse o cemitério aqui, (o rio) teria destruído o centro, tinha matado mais gente”, afirma. Onde olhares forasteiros enxergam caos e desolação, Marobin vê a fortaleza de uma barreira de contenção. “O cemitério serviu de muro. Os mortos salvaram Muçum”, assegura.

 

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