Novo grupo de matadores emerge no Rio, em um letal tripé com bicheiros e milícias
Ele ocupa vácuo deixado pelo temido autodenominado Escritório do Crime

No submundo do crime carioca, o fenômeno dos bandos de matadores de aluguel tem raízes fincadas nos anos 1970, quando bicheiros os contratavam para eliminar rivais com quem duelavam por território. A expansão no ramo dos executores acabou desaguando, uma década mais tarde, nos temidos esquadrões da morte. Em tempos recentes, era o autodenominado Escritório do Crime que dominava essa atividade, capitaneado por Adriano da Nóbrega, o Capitão Adriano, ex-integrante da tropa de elite fluminense que cultivou laços com o clã Bolsonaro. Mas a organização, que segundo investigações esteve à frente de pelo menos duas dezenas de assassinatos, se dispersou em 2020, após sua morte. Abriu-se então espaço para outras gangues do gênero, entre as quais uma que hoje mobiliza as autoridades por seu poder de fogo e raio de ação — o chamado Novo Escritório do Crime, que tem como cabeça o ex-PM Rafael do Nascimento Dutra, bandido conhecido pelo sangue-frio e que responde pela alcunha de Sem Alma.
Um inquérito conduzido pelo Departamento de Homicídios do Rio, ao qual VEJA teve acesso com exclusividade, disseca os bárbaros métodos da quadrilha, que já teria nove mortes nas costas. Os hábitos das vítimas que viram alvo das “missões” dessa turma fora da lei são minuciosamente estudados, de modo a abastecer de informações os atentados realizados por homens em trajes pretos sempre munidos de fuzis e metralhadoras. Policiais e ex-policiais de notável experiência compõem o núcleo duro da facção, que subcontrata quadros quando a demanda sobe. Não é só de assassinatos que eles vivem, mas também da segurança oferecida a outros criminosos — serviço que chega a 10 000 reais a diária, de acordo com a investigação. “Eles se expandiram muito nos últimos tempos e são um desafio à polícia do Rio por seu modus operandi característico dos PMs, capazes de operar com previsibilidade e rapidez”, afirma um integrante do Ministério Público do Rio.

Em 26 de fevereiro do ano passado, o Novo Escritório do Crime entrou em cena para alvejar com mais de dez tiros o advogado Rodrigo Marinho Crespo em frente a seu escritório, vizinho da Ordem dos Advogados do Brasil. A apuração revelou que Crespo queria investir numa casa de apostas on-line, plano que colidia com os interesses de outro expoente da bandidagem fluminense, Adilson Oliveira Coutinho Filho, o Adilsinho, chefe de uma quadrilha de contrabando de cigarros com atuação na Baixada Fluminense e bicheiro em ascensão com quem Sem Alma estabeleceu uma parceria letal. Foi justamente a ele que o contraventor teria recorrido para apagar o advogado que lhe trazia dor de cabeça. Os caminhos dos dois marginais, agora foragidos, se cruzaram há ao menos cinco anos, quando o bicheiro contratou o ainda PM, que fazia bicos como segurança do condomínio onde ele morava.
Afastado da corporação e na mira de processo disciplinar pelos crimes de que é investigado, Sem Alma virou peça-chave na eliminação de desafetos de Adilsinho e ajudou a escrever a seu lado mais um sangrento capítulo na cidade. A escalada do bicheiro na jogatina ilegal sacramentou-se depois de sair vitorioso de uma guerra instaurada com o assassinato do poderoso Waldemir Paes Garcia, o Maninho. Conforme o inquérito, foi aí que ele teria se associado a outro chefão do bicho, Rogério Andrade, e incumbido o Novo Escritório do Crime de uma matança na concorrência. Em uma escuta, Sem Alma se gaba de ter trocado socos com dois homens ao mesmo tempo, matando um deles ao final. “Dois nocautes. O outro pensei que tinha trancado a matrícula, caiu durinho no chão”, diz.

A polícia elenca ainda, entre as malfeitorias encomendadas pelo bicheiro e postas a cabo pelo matador, a execução do dono de um boteco na Zona Norte carioca, que estaria surrupiando parte do faturamento de máquinas caça-níqueis. Um dos apontados como membro do grupo de Sem Alma, o policial militar Thiago Alves Benício chegou a buscar na internet qual seria o “novo escritório do crime”. A preocupação era saber se sua gangue havia alcançado a mesma fama dos executores que aterrorizaram o Rio uns anos atrás. “A diferença entre os dois bandos é que o Escritório do Crime tinha caráter mais independente, prestando serviços para diversas organizações criminosas, e não a um único grupo”, explica Alexandre Herdy, chefe do Departamento de Homicídios da Polícia Civil.
Os chefões da contravenção no Rio se fizeram poderosos ao longo das décadas eliminando inimigos, daí a expansão dos grupos de matadores. Nos anos 2000, a aparição das milícias, compostas pela banda podre das polícias, elevou essas quadrilhas — tanto em estratégia como em força armada — a um novo e ainda mais perigoso patamar. O assassino confesso de Marielle Franco, Ronnie Lessa, chegou a ser membro do Escritório do Crime e, segundo relatou em sua delação, teria aceitado tirar a vida da vereadora após selar um acordo de bandido para bandido — ele ganharia assim o aval para se tornar líder de sua própria célula criminosa. “Há uma reorganização nas engrenagens do crime do Rio, calcado hoje na relação direta entre bicho, milícia e matadores”, afirma o pesquisador Daniel Hirata, da Universidade Federal Fluminense. Uma costura que promove a face mais letal de um bangue-bangue ao qual é preciso de uma vez por todas dar um basta.
Publicado em VEJA de 16 de maio de 2025, edição nº 2944