No pior momento da pandemia, as igrejas evangélicas permanecem lotadas
O governo apoia, mas a Justiça pôs um freio nos cultos e missas
À primeira vista, tudo parece estar adequado: cadeiras vazias, máscaras, protocolos em vigor. Basta um olhar mais atento, porém, para perceber que ali ninguém obedece de verdade ao 1,5 metro de distanciamento, o espaço está muito mais lotado do que devia e máscara é só faz de conta — muita gente tem o nariz descoberto ou escorregou a proteção para baixo do queixo. A maior evidência do pouco caso geral para com as regras do combate ao novo coronavírus vem do púlpito: na sede da Assembleia de Deus Vitória em Cristo (Advec), na Penha, Zona Norte do Rio de Janeiro, os pastores orientam os fiéis a parar de acompanhar os noticiários que “contabilizam mortos” e não deixar de ir à igreja por medo da Covid-19. “O diabo não vai paralisar nossa adoração. Deus preserva a vida de quem crê. Ele está acima desse vírus”, proclamava um missionário, com o rosto descoberto, às cerca de 1 000 pessoas no culto de quinta-feira 1 º de abril.
Igrejas lotadas na pandemia
Sob o escudo da fé, líderes evangélicos de todo o país têm incentivado o rebanho a descumprir medidas sanitárias e furar quarentenas decretadas por prefeitos e governadores. O já acalorado debate pegou fogo às vésperas do domingo de Páscoa, quando o ministro Kassio Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal, liberou a realização de celebrações religiosas em todo o Brasil. Gilmar Mendes tomou decisão inversa em relação a São Paulo e o presidente do STF, Luiz Fux, pôs o assunto na pauta do plenário seis dias depois — quando as mortes por Covid-19 no Brasil, pela primeira vez, passaram de 4 000 em 24 horas. Felizmente, o colegiado derrubou a posição de Nunes Marques.
STF e a Decisão
É questão que não poderia ser politizada, transportada para o STF. Afinal, a própria Corte decretara antes que a decisão — abrir ou fechar os endereços de reza — cabia a governos de estados e municípios. Atualmente, por decisão das prefeituras, em 22 das 26 capitais brasileiras a atividade religiosa é considerada essencial — ou seja, pode funcionar. Entre os poucos que proíbem a abertura dos templos está o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD), que chegou a publicar nas redes sociais que descumpriria o anúncio de Nunes Marques, mas voltou atrás. Mais amplo é o grupo que autoriza as igrejas a receber fiéis individualmente, mas não permite a realização de missas e cultos, como o prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB). Passando por cima dessa autonomia, Nunes Marques, indicado em novembro por Jair Bolsonaro, acatou o pedido de abertura geral e irrestrita encaminhado pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos — um espetacular agrado ao lobby das igrejas evangélicas, imprescindível coluna de sustentação do presidente.
A decisão foi prontamente defendida por aliados do Planalto: Augusto Aras, procurador-geral da República, e André Mendonça, advogado-geral da União e ex-ministro da Justiça — ambos de olho na vaga que se abrirá em julho no STF e que Bolsonaro promete preencher com alguém “terrivelmente evangélico”. “A ciência salva vidas, a fé também”, proclamou Aras na sustentação oral de seu argumento. Os religiosos estão “dispostos a morrer” pela liberdade de religião e de culto, pontificou Mendonça, que é pastor presbiteriano. Com sua propensão a flechadas certeiras, Gilmar Mendes sugeriu que Mendonça “teria vindo de uma viagem a Marte”. E resumiu: “Está havendo um certo delírio neste contexto geral”.
Apoiador e ele mesmo consumidor, desde o ano passado, do tal “tratamento precoce” contra a Covid-19 que a ciência diz ser inócuo, o pastor Silas Malafaia, líder da Advec, publicou um vídeo agradecendo a colaboração de Aras e Mendonça — pouco antes, informara haver testado positivo para o vírus. Assim como Malafaia, outros pastores de peso recomendam medicamentos sem eficácia científica, questionam a vacina e até vendem produtos que dizem ser capazes de despistar o vírus: feijões, no caso de Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus, e uma água milagrosa, no de R. R. Soares, da Igreja Internacional da Graça de Deus. Em Fortaleza, o pastor Davi Góes, da Assembleia de Deus de Canaã, prega que a CoronaVac causa câncer e tem “HIV (o vírus da aids) dentro dela”. Fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir Macedo disse, em março de 2020, que o coronavírus era “uma tática de satanás” (a saber: um ano depois, ele e a mulher seriam vacinados em Miami, mesmo posto de imunização de Estevam e Sonia Hernandes, da igreja Renascer em Cristo). A fake pregação nos templos tem surtido efeito: pesquisa do Datafolha mostra que 49% dos evangélicos são contra o isolamento social, 46% não temem ser infectados e 14% não querem sequer ser vacinados.
Igrejas do Rio de Janeiro
Nos dias que antecederam o liberou geral de Nunes Marques, VEJA esteve em seis igrejas do Rio de Janeiro, onde a prefeitura deliberou permitir serviços religiosos, desde que respeitadas as normas sanitárias. Na Universal em Del Castilho, na Zona Norte, a reportagem assistiu a uma sessão de descarrego para “tirar o diabo do corpo” na qual os pastores, sem nenhum tipo de proteção, punham as mãos na cabeça, nos braços e nos ombros dos fiéis. Todos, claro, sem máscara. A certa altura, os fiéis foram chamados a se apinhar na frente do palco, para orar e pegar envelopes de doações. A Igreja Internacional da Graça de Deus em Jacarepaguá, na Zona Oeste, era outro exemplo do que não se deve fazer na pandemia: nenhum dispensador de álcool em gel, espaçamento de apenas uma cadeira entre os fiéis (cinco vezes menos do que o recomendado) e controle zero do uso de máscara. “Não temo essa doença. Medo não é (coisa) de Deus. Não confio em vacina, só nele”, desafiou uma idosa presente ao culto, alheia aos riscos sanitários.
Disseminação da Covid-19
A irresponsabilidade em nome da fé transforma, de fato, as aglomerações nas igrejas em focos de disseminação da Covid-19. Na Coreia do Sul, onde a testagem intensa permitiu identificar com precisão as chamadas zonas vermelhas, no início da pandemia 60% dos casos confirmados tiveram como ponto de partida a presença em serviços religiosos. Nos Estados Unidos de Trump, líderes evangélicos divulgaram notícias falsas sobre a crise sanitária e contribuíram para fazer do país o campeão mundial de contágio e mortes. Numa contraofensiva à desinformação, a Associação Médica Americana listou cinco motivos pelos quais cultos e missas sem cuidados se tornam focos de contaminação: espaço fechado, grupos grandes, proximidade, longa permanência no mesmo local e cantos, e falas em voz alta, tudo ao mesmo tempo.
A postura dos dirigentes das demais religiões no Brasil tem sido, em geral, de bom senso. A Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) argumenta que não cabe a ela impor regras de funcionamento às dioceses, mas recomenda cuidados. O rabino Nilton Bonder, da Congregação Judaica no Brasil, considera que não é hora de voltar a se reunir nas sinagogas. “Mesmo que se adotem medidas como espaço aberto obrigatório, boa ventilação e ocupação de 25% da capacidade, é impossível barrar a transmissão”, alerta o infectologista Marcelo Otsuka. Diante do triste quadro brasileiro de recrudescimento acelerado das transmissões e recorde de mortes, exercitar a fé, mesmo sendo ela absoluta e inabalável, exige cautela e responsabilidade — para consigo mesmo e para com o próximo.
Publicado em VEJA de 14 de abril de 2021, edição nº 2733