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Nem ele nem ela: os não binários ganham espaço e voz na sociedade

As pessoas que rejeitam tanto o gênero feminino quanto o masculino já são 1,2% da população brasileira, ou quase 3 milhões

Por Jana Sampaio, Sofia Cerqueira, Duda Monteiro de Barros Atualizado em 4 jun 2024, 13h32 - Publicado em 25 jun 2021, 06h00

DEMI LOVATO, 28, cantora
A ex-estrelinha infantil, em fase de revelações pessoais, anunciou sua não binaridade e quer ser tratada por they, em vez de she (ela) ou he (ele). “Temos a oportunidade de ser quem queremos e desejamos”

Nos versos iniciais da música I Would Die 4 U, de 1984, o cantor Prince, artista de visual andrógino que morreu de overdose em 2016, diz: “Não sou mulher, não sou homem, sou algo que você nunca vai entender”. Passados quase quarenta anos, a (difícil) compreensão das palavras de Prince está sendo assimilada pela sociedade agora com a crescente exposição do fenômeno dos não binários — gente que não se identifica nem com o gênero feminino nem com o masculino e, cada vez mais, faz questão de que essa diferenciação seja levada a sério. A cantora e compositora americana Demi Lovato e a atriz Bárbara Paz são duas celebridades que recentemente proclamaram sua não binaridade, chamando a atenção para o tema e motivando outros a sair do armário. Personagens que se encaixam nesse conceito aparecem em produções na televisão, no cinema e no streaming — até dois jedis gêmeos são não binários num quadrinho da franquia Star Wars.

Por força dessa movimentação, típica da fluidez e do temperamento inclusivo das novas gerações, já se permite o uso em documentos de alternativas ao feminino e masculino no quadrinho “sexo” — lembrando que gênero é uma coisa, sexualidade é outra, e elas não devem ser confundidas. “Uma das grandes marcas da nossa era é as pessoas se sentirem livres para questionar, experimentar, se declarar, mudar e, se necessário, novamente se transformar”, diz o sociólogo Sam Bourcier, da Universidade de Lille, na França, referência no estudo de gênero e ele mesmo não binário assumido.

Bárbara Paz
(Bob Wolferson/VEJA.com)

BÁRBARA PAZ, 46, atriz
Mais famosa brasileira a levantar a bandeira do gênero neutro, ela conta que percebeu sua condição de não binária há pouco tempo e que gosta de ser “menino e menina”. “Amo essa mistura de eus”, diz

De uma forma simplificada, o indivíduo não binário é aquele que não se enxerga nem como homem nem como mulher. O xis da questão (sendo xis uma letra que lhes agrada) é estabelecer como, então, eles se posicionam — e aí as definições ocupam o alfabeto inteiro. Há os fluidos, que uma hora se identificam com o masculino, outra com o feminino. Há os agêneros, que não se reconhecem em nenhum deles. Nesse universo, o Facebook enumera 52 gêneros, entre os quais o cisgênero, que basicamente quer dizer que a pessoa se sente bem exclusivamente com o sexo com que nasceu (identidade de gênero), podendo ou não ser homossexual. Há ainda os trans, que só se veem no sexo oposto. Sem falar nos poligêneros, que circulam por vários gêneros, e os pangêneros, que abrangem todos.

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No ano passado, a revista científica Nature pela primeira vez contabilizou os brasileiros que se encaixam no universo não binário: 1,2% da população, ou quase 3 milhões de pessoas. No mundo, eles são calculados em 2% — o que corresponde a 157 milhões de indivíduos. Um dos primeiros a acatar oficialmente o gênero neutro, o estado de Nova York já permite que, na carteira de motorista e na certidão de nascimento, o F e o M tradicionais sejam substituídos por X, e pai (father) e mãe (mother) sejam trocados pelo genérico parent. O Google anunciou que o Docs vai aceitar vocabulário neutro — amigue, queride, todes —, sem que a palavra seja apontada como incorreta.

CAMS LUZ, 21, artista
CAMS LUZ, 21, artista – (//Arquivo pessoal)

CAMS LUZ, 21, artista
Registrado no sexo feminino, mas preferindo ser tratado no masculino, o paulista (à esq.), casado há quatro anos com o empreendedor Leo Drummond, 26, diz ter crise de angústia quando se referem a ele como “moça”

No Brasil de alma conservadora, o reconhecimento da neutralidade de gênero avança a passos lentos. “Nosso país tem um histórico de repressão impregnado tanto no imaginário coletivo quanto na legislação”, afirma Mariah Silva, pesquisadora de gênero e sexualidade na UFF. Primeira pessoa não binária a conseguir modificar o nome original e incluir “sexo não especificado” na certidão de nascimento, a brasiliense Aoi Berriel, de 26 anos, precisou entrar com um processo na Justiça, que está em trâmite desde 2017. “Sei da importância do meu caso. Pode parecer pouco, mas tem um enorme significado”, diz Aoi, que cursa ciências sociais na UFRJ. Registrada no sexo masculino, a estudante, filha de militar e dona de casa, aceita o pronome feminino por uma questão de praticidade: os neutros elu, delu, ili, dili são pouco conhecidos no país. “Eu me sentia um ET na infância”, lembra. Aoi já não é mais única: há dois meses, outra decisão judicial, dessa vez em Santa Catarina, permitiu a retificação dos documentos de uma estudante de psicologia (igualmente registrada ao nascer no sexo masculino), que pediu para não ser identificada.

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Em outros pontos do mundo, o debate está mais avançado. A Austrália foi o primeiro país a contemplar a não binaridade nos passaportes, há dezoito anos. Foi seguida por Argentina, Nova Zelândia, Canadá, Áustria e Alemanha. Desde sua chegada à Casa Branca, Joe Biden tem estimulado o acatamento oficial do gênero neutro. Na reunião do G7 no Reino Unido, no início do mês, o primeiro-ministro britânico Boris Johnson declarou que, passada a pandemia, as sociedades precisam reconstruir o mundo de uma maneira “mais neutra em termos de gênero”. O presidente Alberto Fernández já se dirigiu à população de seu país como “argentines”, sem “o” nem “a”, no mais castiço não binarinês. No ano passado, a americana Mauree Turner, 27 anos, se tornou a primeira não binária a se eleger para uma Assembleia Legislativa — isso no conservador estado de Oklahoma. No País de Gales, Owen Hurcum, 23 anos, foi alçado a prefeito seguindo a mesma rejeição ao masculino e feminino tradicionais.

AOI BERRIEL, 25, estudante
AOI BERRIEL, 25, estudante – (Brenno Carvalho/Agência O Globo)

AOI BERRIEL, 25, estudante
O primeiro não binário no país a mudar de gênero na certidão de nascimento comemora: “Sei da importância do meu caso” (no detalhe, modelo de como será o novo registro)

No meio artístico, a bandeira da não binaridade tem sido levantada com frequência nunca vista. Demi Lovato, 28 anos, anunciou que não quer mais ser tratada como “ela” e muito menos “ele” — prefere o plural they, que em inglês é neutro. “Enfim temos a oportunidade de ser quem desejamos”, celebrou em post. No Brasil, Bárbara Paz, 46 anos, trilhou o mesmo caminho. “Às vezes me olhava no espelho e me sentia um garoto. Gosto de ser menino e menina. Amo essa mistura de eus”, disse. Antes delas, o cantor inglês Sam Smith, 29 anos, tornou pública sua identidade de gênero em 2019. “Sempre estive em guerra com meu corpo e minha mente e me importava demais com o que os outros pensariam. Decidi me aceitar como sou”, comunicou. Da turma de famosos que decidiu se expor fazem parte o ator Jaden Smith, 22, filho do astro Will Smith, e a cantora americana Janelle Monáe. A nova realidade, como não podia deixar de ser, foi transposta para a ficção, na figura de Loki, meio herói-meio vilão, vivido pelo ator Tom Hiddleston, que já apareceu em filmes da Marvel e agora ganha um seriado só seu com postura decididamente não binária. Inspirada na animação da Dreamworks, a série Madagascar: A Little Wild inclui uma personagem que não é macho nem fêmea nos episódios do mês de junho, que celebra o Orgulho LGBTQIA+. A série global Verdades Secretas 2 vai ter uma personagem de gênero neutro (veja a coluna do autor, Walcyr Carrasco, na pág. 61). Sem falar em Ceret e Terec, os jedis trans de Star Wars: The High Republic.

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São muitas as nuances da neutralidade de gênero, e sua compreensão requer mente aberta e aceitação da diversidade — duas premissas para o convívio social sem atritos hoje em dia. Proclamar-se nem homem nem mulher traz à mente, por exemplo, o visual andrógino, presente sobretudo no mundo artístico, mas ele não é, necessariamente, uma manifestação de não binaridade. Na definição formal, o modo como a pessoa se veste, fala e se apresenta é uma expressão de gênero — diferente da identidade de gênero, que é como o indivíduo se percebe. O ator paulista Cams Luz, 21 anos, explica que nasceu em um corpo feminino, considera-se sem gênero (usa o pronome masculino, embora seja identificado socialmente como mulher) e é casado com um homem há quatro anos. “É errado reduzir o ser humano à sua aparência. Seria muito mais fácil perguntar como o outro prefere ser chamado”, rebela-se Cams.

ABBI SAMPAIO, 31
ABBI SAMPAIO, 31 – (//Arquivo pessoal)

ABBI SAMPAIO, 31
Na Vivo, empresa em que trabalha, o candidato a uma vaga pode declarar o gênero que acha adequado, escolher a forma de ser tratado e usar o nome que preferir no crachá e no e-mail. “É uma vitória ser tão bem acolhido”, afirma

Para evitar constrangimentos, muitas empresas vêm adotando a política neutra de tratamento de gêneros. A Japan Airlines baniu o tradicional “senhores e senhoras” nos comunicados a bordo. Nas reservas da United Airlines e outras companhias, os passageiros podem optar por Sr., Sra. ou Sx. Nos idiomas latinos, como o português e o espanhol, em que quase tudo tem feminino e masculino, começam a ficar conhecidos o “elu”, no lugar de ele ou ela, e o “e” ou “u” nos coletivos (todes, professorus). “A língua tem o poder de se adaptar ao seu tempo. Da mesma forma que a expressão vossa mercê deu lugar à palavra você, há alterações que nascem da demanda social”, reflete Vivian Cintra, mestra em linguística pela USP. Pesquisa realizada pelo Pew Research Center mostrou que 35% dos americanos entre 7 e 22 anos conhecem alguém que adota pronomes neutros.

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No mundo corporativo, a necessidade de adaptação a novos tempos tem levado empresas a promover políticas “amigáveis” no campo da diversidade. Uma pesquisa da Cia de Talentos, especializada em recrutamento de profissionais, detectou no ano passado aumento de 30% nas inscrições em seu cadastro de pessoas não binárias e trans; as contratações delas, por sua vez, mais que dobraram. “A mudança é reflexo de anos de luta e de um novo entendimento por parte do mercado de trabalho de que a diversidade aumenta a produtividade”, diz a consultora de recursos humanos Sofia Esteves. No processo seletivo da telefônica Vivo, o candidato tem a opção de preencher um terceiro gênero e escolher a forma pela qual prefere ser tratado, podendo ainda usar o nome de sua preferência tanto no crachá quanto no e-mail. “É uma vitória se sentir acolhido assim no trabalho, depois de ter tido que superar a pressão da família, da sociedade e a minha própria”, afirma Abbi Sampaio, 31 anos, que atua em Curitiba como atendente, considera-se um não binário de gênero fluido e mistura roupas masculinas com salto e maquiagem.

A tolerância se estende ao meio acadêmico, mais propício a experimentações. Igor Martins, 34 anos, funcionário público na Universidade Federal do Acre, nasceu em família religiosa e penou antes de chegar à situação atual, em que mistura um visual barbado com cabelos longos e roupas femininas, sem ser incomodado por isso. “É um processo doloroso superar tantos obstáculos. Como sou concursado e dou expediente em ambiente progressista, posso ser autêntico sem medo de retaliações”, avalia. Quem não chega a esse estágio, porém, reclama de preconceito e discriminação constantes. “Algumas pessoas olham para mim como se eu fosse uma aberração. Não espero que me entendam, só que aprendam a me respeitar”, desabafa o empresário paranaense Guttervil Santos, 42.

Um estudo produzido pela Universidade Harvard revela que o desenvolvimento da identidade de gênero começa na primeira infância, entre os 2 e 3 anos, e se desenvolve de acordo com o contexto social — família, sociedade e momento da história. Civilizações antigas já reconheciam a pluralidade que vai além dos dois gêneros tradicionais — caso dos Mahu, como são chamados os nativos com traços ambíguos na Polinésia Francesa, e da casta indiana Hijira, em que pessoas com características masculinas se vestem com roupas femininas. “A diferença agora é que os não binários não estão restritos a guetos. Eles circulam em vários ambientes e se fazem presentes em todas as classes sociais”, observa a antropóloga Sonia Giacomini, especialista em gênero, raça e sexualidade. Com sua crescente exposição, querem mostrar que há mais coisa entre o feminino e o masculino do que sonhavam nossos antepassados.

DIVERSIDADE É POP
A não binaridade se dissemina na ficção

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Loki
Loki (Disney/Marvel Studios/.)

Loki 
O irmão adotivo de Thor nos filmes da Marvel ganha um seriado próprio no qual se declara integrante das fileiras do gênero fluido

Madagascar
Madagascar – (Dream Works/.)

Madagascar
A série de animação infantil incluiu, pela primeira vez, nos episódios de junho, uma personagem que não é macho nem fêmea

Star Wars
Star Wars – (Marvel/.)

Star Wars 
Uma história em quadrinhos da franquia, High Republic, apresenta dois jedis trans, os gêmeos Terec e Ceret

Publicado em VEJA de 30 de junho de 2021, edição nº 2744

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