Black Friday: Revista em casa a partir de 8,90/semana
Continua após publicidade

Não há mais

Publicado em VEJA de 13 de fevereiro de 2019, edição nº 2621

Por Roberto Pompeu de Toledo
Atualizado em 4 jun 2024, 16h00 - Publicado em 8 fev 2019, 07h00

A mineradora Vale e o poeta Carlos Drummond de Andrade têm em comum o lugar em que vieram à luz — Itabira, Minas Gerais. Drummond nasceu em outubro de 1902; a Vale, com o nome muito mais bonito de Vale do Rio Doce, em 1942, pela pena de Getúlio Vargas, mas iniciou efetivamente suas atividades ao assumir a exploração do ferro do Pico do Cauê, em Itabira, em outubro de 1943. Drummond, na infância, via o Pico do Cauê da janela de sua casa. Nessa época o ferro era explorado pelos ingleses da Itabira Iron. No poema Itabira, incluído em seu livro de estreia (Alguma Poesia, de 1930), ele escreveu:

Cada um de nós tem seu pedaço do pico do Cauê.

Na cidade toda de ferro as ferraduras batem como sinos.

Os meninos seguem para a escola.

Os homens olham para o chão.

Os ingleses compram a mina.

Continua após a publicidade

Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável.

O “progresso” batia às portas. Numa crônica de 1933, Drummond evocou a utopia em que “uma usina imensa reuniria 10 000 operários congregados em cinquenta sindicatos, e alguma coisa como Detroit, Chicago, substituiria o ingênuo traçado das ruas do Corte, do Bongue, dos Monjolos”. Tutu Caramujo, pequeno comerciante da cidade, faz no poema o papel de cético.

Brumadinho, assim como Itabira e Mariana, vendeu a alma à Vale

Mesmo sem ter virado uma Detroit, Itabira estabeleceu com a mineração um pacto de vida ou morte — e quem entrou com a morte foi o Pico do Cauê. Ele estava para Itabira como o Itacolomi está para Ouro Preto, ou o Itambé para Diamantina. Era o ponto de referência, o marco a orientar, como poderoso sinalizador, desde os índios e os garimpeiros até os turistas. “Aqui fica Itabira”, dizia. Pois o Cauê, que tinha 1 340 metros de altura, foi comido de alto a baixo. No poema A Montanha Pulverizada, Drummond escreveu:

Continua após a publicidade

Esta manhã acordo e não a encontro.

Britada em bilhões de lascas,

deslizando em correia transportadora

entupindo 150 vagões

Continua após a publicidade

no trem-monstro de 5 locomotivas,

— o trem maior do mundo, tomem nota —

foge, minha serra, vai,

deixando no meu corpo e na paisagem

Continua após a publicidade

mísero pó de ferro, e este não passa.

Itabira está a 150 quilômetros de Brumadinho. A uni-las, e a Mariana e a outras, está que venderam a alma à Vale. Do Pico do Cauê, que era a alma de Itabira, restou uma cratera. Brumadinho ficou conhecida Brasil afora e além pelo museu a céu aberto do Instituto Inhotim. Hoje, Brasil afora e além, é identificada com a lama, e se fosse só a lama seria pouco, pois sob a lama há os corpos. As imagens do exato momento em que a barragem se rompeu vão ficar para a antologia universal das imagens de terror como a dos aviões a destruir as torres gêmeas. Numa, avançando de lado, a lama é a língua de um réptil gigante a buscar humanos como se fossem insetos; noutra, vista de frente, é um monstro a expelir um vômito de sujeira, veneno e morte. O Brasil não tinha terremoto nem tsunami. A Vale encarregou-se de, numa tacada, corrigir a dupla falha.

Drummond termina o poema Confidência do Itabirano dizendo: “Itabira é apenas uma fotografia na parede / Mas como dói!”. E no poema José afirma que não adianta querer ir para Minas, porque “Minas não há mais”. São suspiros de desalento que cabem em Brumadinho. Para alguns terá virado apenas uma fotografia na parede; para outros não há mais. Tutu Caramujo, na porta de sua venda, balança a cabeça. O Brasil não tem jeito, cisma, identificando uma derrota incomparável.

Publicado em VEJA de 13 de fevereiro de 2019, edição nº 2621

Continua após a publicidade
carta
Envie sua mensagem para a seção de cartas de VEJA Qual a sua opinião sobre o tema deste artigo? Se deseja ter seu comentário publicado na edição semanal de VEJA, escreva para veja@abril.com.br
Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Semana Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

Apenas 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (a partir de R$ 8,90 por revista)

a partir de 35,60/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.