“Não desisti da vida”, afirma mulher que foi queimada pelo ex-marido
Dona de invejável resiliência, Marciane dos Santos fala de sua recuperação
A primeira vez que me olhei no espelho, depois de ter o corpo queimado pelo homem com quem vivi sete anos, pensei: “O que ele fez comigo?”. Estava desfigurada quando minha filha, de 8 anos, veio me visitar no hospital. Ela me olhava em choque e perguntava: “Mamãe, é você mesmo?”. Só me reconhecia pela voz. Não me preocupava a aparência, mas, sim, saber que não conseguiria voltar tão cedo a ser a mãe que era antes, por falta de saúde, de força física — nem para ela, nem para meu caçula, de 4 aninhos, Sérgio Emanuel, filho do homem que tentou me matar. Sempre brinquei de bola e levei as crianças para passear. Hoje, morro de medo: se eu cair, provavelmente meu destino será o hospital, onde já fiquei cinco meses internada. Aprendi a lidar com a vontade de pegá-los no colo, abraçá-los, e não poder. Um simples toque na pele me causava uma dor lancinante. Agora, melhorou. Senti revolta, claro, mas hoje, passados mais de dois anos, não guardo raiva dele, que está preso. E não perdi a fé na vida.
Meu ex-marido era vizinho da minha irmã, que um dia nos apresentou. No início do relacionamento, me dava chocolates, fazia poemas, era romântico. Com o tempo, vieram as ofensas, e a relação foi se desgastando. Tivemos muitas idas e vindas. Numa das vezes em que reatamos, engravidei e ele disse: “Vamos morar juntos”. Aí, sob o mesmo teto, as brigas por ciúmes se tornaram constantes. Ele bebia e chegava a desejar a minha morte. Apesar disso, eu não me sentia ameaçada e jamais imaginei o que viria a seguir.
Estávamos separados havia seis meses e ele descobriu que eu tinha engatado um namoro. Foi lá em casa para conversar e, no meio da escada, me deu um empurrão. Saí correndo, mas ele não desistiu. Achei que, como em outras vezes, a discussão não daria em nada. Ele nunca havia levantado a mão para mim, jamais tinha ultrapassado o limite da agressão verbal. Naquele dia, foi diferente. Pegou uma faca na cozinha e partiu para cima de mim. Eu me escondi no banheiro e esperei que fosse embora. Mas ele continuou ali e, quando abri a porta, jogou um líquido inflamável em cima de mim e logo as chamas tomaram conta do meu corpo. Foi tudo muito rápido. Só ouvia seus gritos dizendo que estava aliviado por ter me atingido, um horror. Ao entrar na ambulância, ainda lúcida, senti até a garganta queimar. Desmaiei e acordei três meses depois.
Não sei mais quantas cirurgias enfrentei. Perdi cinco dedos da mão, uma orelha, um pedaço do nariz, a perna esquerda e tive 40% do corpo queimado. Ao deixar o coma, gritava de dor e demorei a perceber a dimensão do que tinha acontecido. Passava a maior parte do tempo anestesiada ou dormindo. Nem uma tarefa corriqueira, como tomar banho, era possível sem sedação. Nada, porém, superava a dor de refazer os curativos. Os médicos contaram que, a cada dez vezes que entravam no meu quarto, cinco eram para me reanimar. Sofri várias paradas cardíacas, fiquei por um fio. Perdi as contas de quantas vezes me falaram: “De hoje você não passa”.
Não é fácil ver sua vida se transformar por completo por um ato de pura covardia. Para mim, que sempre trabalhei e me sustentei, precisar dos cuidados e das doações de amigos e desconhecidos é uma tremenda mudança. Vivo hoje em uma cadeira de rodas e sei que muitas cirurgias reparadoras ainda me aguardam — na boca, na barriga, nos braços, a prótese na perna, mas não me dou por vencida. Na verdade, me sinto agradecida por estar viva e ainda com sonhos. Quero conquistar minha casa própria e ver meus filhos crescendo. Às mulheres que experimentaram situação parecida, digo: nunca caiam na armadilha de se culpar. E não desistam da vida. Hoje, me olho no espelho, feliz por estar aqui, e passo batom.
Marciane dos Santos em depoimento dado a Jana Sampaio
Publicado em VEJA de 31 de março de 2021, edição nº 2731