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“Não acontecia no Brasil”

O espanto do vice Hamilton Mourão reflete a indignação geral, mas o país parece ter definitivamente importado a insanidade dos tiroteios a esmo

Por Filipe Vilicic, Sabrina Brito Atualizado em 4 jun 2024, 15h38 - Publicado em 15 mar 2019, 07h00
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  • Na manhã do dia 20 de abril de 1999, uma terça-feira, os americanos Eric Harris, de 18 anos, e Dylan Klebold, de 17 anos, entraram na Columbine High School, situada na cidade que lhe dá nome, no Estado do Colorado (EUA), onde ambos estudavam. Chegaram armados com uma carabina, duas espingardas, uma pistola automática e quatro facas. Antes haviam instalado explosivos no local. Por volta de 11 horas da manhã, começaram a disparar em professores e colegas da escola. O horror se estendeu até o meio-dia, quando, depois de rápida troca de tiros com a polícia, Eric e Dylan suicidaram-se. O caso, que entrou para a história como o Massacre de Columbine, resultou na morte de doze crianças e um professor, além de 24 feridos. Se todas as bombas plantadas tivessem sido detonadas, a tragédia seria ainda maior. Na quarta-feira 13, após o Massacre de Suzano, o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, alarmou-se: “Essas coisas não aconteciam no Brasil”. No entanto, ocorrem cada vez mais. O próprio Mourão admitiu isso em seguida. “Ocorriam em outros países. Nós tivemos no Realengo, no Rio de Janeiro, uns tempos atrás. Agora na escola de São Paulo, e já teve em um templo. Lamento profundamente.”

    É como se o Brasil houvesse começado a importar a insanidade muito americana dos tiroteios a esmo. Segundo relato de um ex-aluno da escola de Suzano que estudou com o atirador Guilherme Taucci Monteiro em 2016, o ex-­colega contava que desejava replicar o Massacre de Columbine. “Ele sempre falava sobre armas e postava coisas estranhas na internet. Um dia, disse que repetiria o que aconteceu nos EUA”, recordou o garoto, que pediu para se manter anônimo, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo. Um levantamento realizado em 2014 pela americana ABC News Investigation mostrou que, nos catorze anos seguintes a Columbine, ao menos dezessete ataques foram diretamente inspirados no massacre de Colorado. “Há uma romantização daquele episódio em filmes, livros, na mídia”, disse a VEJA a socióloga Jaclyn Schildkraut, professora de justiça criminal na Universidade do Estado de Nova York e autora de três livros sobre tiroteios em massa em colégios — um acerca do marcante caso de 1999. “São muitas as histórias de jovens que nem eram nascidos naquele tempo mas que disparam armas alegando ter sido motivados por tudo o que se contou a respeito de Columbine”, frisou ela.

    “A transmissão em massa da informação por meio da internet permitiu que notícias de massacres americanos fossem rapidamente divulgadas no mundo inteiro, o que potencialmente influenciou a cabeça de pessoas de outras nacionalidades”, observa a socióloga Rachel Kalish, especialista em estudos da violência da Universidade do Estado de Nova York. O professor da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP) Rafael Alcadipani da Silveira acrescenta outro fator para o aumento de ocorrências dessa natureza no Brasil: “Esse tipo de crime tem ficado frequente por fazer parte de uma lógica de ódio, dentro um país no qual tem proliferado a cultura do confronto, da violência, do tiro, da porrada e bomba”.

    Ataque em Suzano
    AQUI DENTRO - A tragédia em uma escola de Realengo, no Rio: doze mortos pelo ex-aluno Wellington Menezes de Oliveira (Rio Police/Handout/Reuters)
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    Ao levantar a questão de por que tiroteios em escolas começaram a acontecer também no Brasil, o vice Hamilton Mourão culpou os “videogames violentos”. A justificativa — muito usada nos EUA por lobistas da indústria bélica para tentar tirar o foco das armas de fogo — não se sustenta. No Japão, por exemplo, 60% dos cidadãos são adeptos dos games (inclusive os de teor agressivo); entretanto, lá a média de morte por armas de fogo é de três por ano. Enquanto isso, nos EUA, onde uma porcentagem similar da população adotou o mesmo passatempo, são 40 000 mortes anuais. Em nenhum outro lugar do mundo ocorrem tantos ataques a escolas como nos EUA. Em 2018 o país quebrou o próprio recorde nesse tipo de calamidade: foram 94 eventos, 59% a mais do que o anterior, alcançado em 2006.

    Por outro lado, o fácil acesso a pistolas está ligado diretamente ao aumento desse tipo de violência. Um estudo publicado pela revista médica inglesa BMJ mostrou, pela análise de crimes com armas de fogo nos EUA, que, quanto mais elevado o número delas, maior é a incidência de tiroteios em massa em escolas. A cada aumento de 10% no número de armamentos, crescem 35% os crimes nos colégios. Vale lembrar que em território americano existem mais armas de fogo em circulação, na mão de civis, do que habitantes.

    Loja de armas
    LÁ É FÁCIL – Feira de armas nos EUA: a cada aumento de 10% no número de armamentos, crescem 35% os crimes em escolas (George Frey/Getty Images)
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    No Brasil, no entanto, a situação é menos alarmante: estima-se que há apenas oito armas, entre regularizadas e em situação irregular, para cada 100 000 habitantes. Mas isso pode mudar. O decreto assinado em janeiro pelo presidente Jair Bolsonaro estende a validade do registro de cinco para dez anos, permite a posse por qualquer morador de estados com índice de homicídios acima de dez por 100 000 pessoas (situação na qual se encontram todas as regiões do Brasil) e libera a compra de quatro unidades por indivíduo. E o governo quer mais. Parlamentares da chamada “bancada da bala” preparam um pacote que prevê direito ao porte, redução de tributos, anistia a donos de armas sem registro e diminuição da idade mínima de compradores de 25 para 21 anos, além de abertura do mercado para empresas estrangeiras. No mesmo dia do massacre de Suzano, Bolsonaro declarou que não dorme sem uma pistola ao lado da cama. Isso não acontecia no Brasil.

    Com reportagem de André Lopes e Thais Navarro

    Publicado em VEJA de 20 de março de 2019, edição nº 2626

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