Na era Bolsonaro, Inpe chega ao maior estágio de penúria de sua história
Órgão fundamental para o país sofre com a falta de verba, o que afeta ações estratégicas como as previsões climáticas e o monitoramento da Amazônia
Para um governo chegado às teses mais obscurantistas e que se choca frequentemente com a ciência (vide a espantosa dose de negacionismo utilizada pelo Palácio do Planalto no combate à pandemia, com os conhecidos resultados desastrosos), não é de se espantar que a instituição científica mais respeitada do país tenha virado alvo da atual gestão. Infelizmente, a política deu resultados. Sob vários aspectos, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) chegou na era Bolsonaro ao maior estágio de penúria de sua história. Sucessivos cortes de verbas nos últimos anos ceifaram boa parte da mão de obra, comprometeram pesquisas de ponta e programas fundamentais ao país, incluindo os serviços de monitoramento por satélite dos grandes biomas, como a Amazônia. “A situação é extremamente crítica e não há mais recursos para tocar esses projetos”, diz o ex-diretor Ricardo Galvão, demitido em agosto de 2019 após enfrentar o presidente, que chamou de “mentirosos” os dados do instituto que apontavam alta de 88% no desmate da floresta.
Para ter uma ideia do nível de sucateamento, o orçamento de 2021, de 85,4 milhões de reais, é o menor da história recente — a cifra representa metade do que era destinado ao instituto em 2013 (veja o quadro abaixo). O valor reservado à observação da Amazônia para 2022 não é suficiente para o ano todo. Até junho do ano que vem, o Inpe gastará seus últimos centavos do Fundo Amazônia nesse tipo de trabalho. O recurso começou a secar em 2019 após um atrito entre o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) e os governos da Noruega e da Alemanha, que financiavam as ações. Para monitorar os outros quatro biomas do país — pampa, Pantanal, Mata Atlântica e caatinga —, há dinheiro garantido só por mais seis meses.
O corte de verbas atingiu quase todas as áreas. Em julho, o instituto anunciou, por economia de energia elétrica (5 milhões de reais por ano), o desligamento do Tupã, o supercomputador que traça cenários climáticos para até cinquenta anos. No lugar, foi providenciada a compra de um outro com bem menos capacidade. Até um programa celebrado pelo governo encontra-se à míngua. Depois do festejado lançamento na Índia do primeiro satélite de observação da Terra totalmente projetado, testado e operado por brasileiros, em fevereiro, o programa foi literalmente para o espaço. Ele se encontra congelado e sem orçamento.
Ao pouco dinheiro soma-se a falta de gente. O instituto perdeu um quarto dos funcionários que tinha em 2013 e opera no limite. Cerca de um terço já recebe o abono permanência, ou seja, pode se aposentar, mas precisa seguir trabalhando. “Se não houver uma reposição séria de pessoal, o instituto vai perder a capacidade de executar o que faz”, alerta o coordenador Claudio Almeida, responsável pelo monitoramento da Amazônia.
Quase desfigurado, o Inpe tenta se virar para atrair recursos. Uma das opções é conseguir verba do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que teve um corte de 600 milhões de reais em outubro — a esperança é que o governo devolva uma parte desse valor. O instituto também concorre a um financiamento do fundo internacional Green Climate Fund, para substituir o apoio privado que perderá. O caixa do instituto é formado por várias fontes, que incluem repasses do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações, ao qual é subordinado, fundos internacionais, convênios e parcerias com outros órgãos, como a Agência Espacial Brasileira.
O aperto orçamentário vem gerando protestos da comunidade científica. A associação de bolsistas e pós-graduandos do Inpe divulgou uma carta afirmando que o corte “impede que o instituto cumpra seus compromissos e instaura uma situação insustentável”. Em outubro, oito entidades, coordenadas pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), criticaram os cortes em ciência. O governo não deu nenhuma resposta.
A qualidade das previsões climáticas já está comprometida, mas uma pane em outros programas principais poderia agravar a imagem de pária ambiental que Bolsonaro vem cultivando. A pior hipótese seria o Inpe perder a credibilidade internacional, o que afetaria até os negócios brasileiros, pois o governo nem sequer teria dados confiáveis para mostrar ao mundo. A atmosfera carregada de nuvens que hoje paira sobre o Inpe é um grave sinal de alerta ao país.
Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2021, edição nº 2768