Ministério da Saúde vai começar 2023 com menos dinheiro e muitos desafios
Rosário de problemas também inclui a falta de planejamento, um passivo gigante de pacientes à espera de atendimento e uma pane de gestão
Um dos maiores orçamentos da União e uma óbvia prioridade de qualquer governo — ou ao menos deveria ser —, o Ministério da Saúde chega ao fim de 2022 combalido pela crise profunda que atingiu a pasta em meio à travessia de um dos momentos mais turbulentos da vida brasileira. Além da marca trágica de quase 695 000 mortes, a pandemia deixou por aqui um rastro de equívocos, omissões, má gestão e descaso com uma área vital para a população — basta dizer que a pasta teve quatro ministros nos tristes tempos de Covid-19, incluindo um general (Eduardo Pazuello) e um médico que ficou só um mês no cargo (Nelson Teich).
Às vésperas da troca de comando no país, as perspectivas para a saúde são, no mínimo, preocupantes. A pasta, que pode ser comandada por alguém como a presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Nísia Trindade, atual favorita entre os postulantes à vaga, entrará em 2023 com um rosário de problemas, como a redução do orçamento, a falta de planejamento, um passivo gigante de pacientes à espera de atendimento na rede e uma pane de gestão.
O maior e mais urgente desafio é a vacinação, o que ilustra à perfeição o buraco em que o país se meteu. Outrora um orgulho, a imunização em massa é hoje um amontoado de problemas. Se, mesmo com atraso, o país conseguiu atingir uma alta cobertura contra a Covid-19, as doses subsequentes foram ficando esquecidas, mostrando que um erro pode se repetir. Depois de ter falhado na compra do imunizante no início da pandemia, o governo não se planejou para o ano que vem. A pouco mais de duas semanas do fim do mandato, o Instituto Butantan e a Fiocruz não receberam pedidos do ministério para a campanha de 2023.
Com outras doenças o cenário também não é animador. Entre 2015 e 2021, os cinco imunizantes priorizados (pentavalente, tríplice viral, pneumocócica, meningocócica C e poliomielite) tiveram queda média de 30% na procura. A cobertura de tríplice viral e hepatite B para crianças de até 1 ano é de 50% em 2022, quando a meta é 90% (veja o quadro). O cenário originou um alerta do TCU. Em relatório de auditoria divulgado no último dia 5, o tribunal diz que o quadro eleva o risco de retorno de doenças eliminadas e do aumento do número de casos de doenças imunopreveníveis na população. Outro problema atinge um dos orgulhos do sistema brasileiro: o seu banco de dados. O TCU relatou deficiências em pontos como o acompanhamento da situação vacinal das famílias e a busca de faltosos e pessoas com esquema incompleto. Esse mesmo relatório aponta ainda a inexistência de dados confiáveis para orientar o planejamento da compra e distribuição de imunizantes, o controle de estoques, os riscos de desabastecimento e a perda de vacinas por conta da validade.
Inegavelmente, a área da saúde se encontra hoje na UTI por obra direta do governo Jair Bolsonaro, cujo discurso, com frequência, deu corda a teses anticientíficas e ajudou a espalhar o que o TCU chama de “crenças e percepções equivocadas acerca das vacinas”. Contribuiu ainda o atrito permanente com os estados, o que ajudou a quebrar um sistema baseado na articulação dos entes da federação. A falta de colaboração também tem dado o tom na transição. “O ministério não passou os estoques de insumos, não sabemos a validade dos produtos e vamos começar a operar no escuro”, conta o ex-ministro da Saúde Arthur Chioro. Em nota, a gestão Marcelo Queiroga nega que haja apagão de informações de vacinação e diz que dados individuais e coletivos estão disponíveis no aplicativo ConecteSUS. Mas confirma o sigilo. “De acordo com a lei 12.527, de 2011, o grau de sigilo do banco de dados de estoque de insumos estratégicos do Ministério da Saúde é reservado”, diz o comunicado.
Para começar a tirar a área do estado crítico, uma das prioridades do novo governo é restabelecer imediatamente a comunicação com a população e adquirir o mais rápido possível as vacinas que não foram encomendadas. A falta de dinheiro é outra questão. O orçamento é de 149,9 bilhões de reais, menor que os 172,6 bilhões deste ano. Lula busca mais 20 bilhões de reais por meio da PEC da Transição. Estudo feito pelas consultorias técnicas do Congresso mostram que o montante para 2023 é o mais baixo desde 2014.
A penúria atual chama a atenção mesmo para um país com um histórico de tantas dificuldades no setor. Apesar da pobreza e dos problemas sanitários, o Brasil produziu nomes importantes na saúde pública, como Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e Adolfo Lutz, e criou o SUS, que capitaneou políticas reconhecidas internacionalmente, como o tratamento da aids, e foi fundamental na pandemia. O novo governo terá pela frente os grandes desafios de fazer jus a esse histórico e colocar em campo uma gestão competente capaz de tirar a saúde da UTI.
Publicado em VEJA de 21 de dezembro de 2022, edição nº 2820