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“Meu pai é um monstro”

Em depoimento chocante, Dalva Teixeira, filha de João de Deus, revela ter sido abusada e agredida pelo médium de Abadiânia desde os 10 anos de idade

Por Thiago Bronzatto, de Anápolis, Giulia Vidale, de Abadiânia, e João Batista Jr.
Atualizado em 4 jun 2024, 16h07 - Publicado em 14 dez 2018, 07h00

Em apenas três dias, desde que o programa Conversa com Bial e o jornal O Globo revelaram as denúncias de mulheres que teriam sido sexualmente assediadas por João Teixeira de Faria, o João de Deus, de 77 anos, deu-se uma avalanche terrena contra o médium mais celebrado do Brasil. O Ministério Público registrou o relato de mais de 300 vítimas, com roteiro parecido: elas foram abusadas dentro de uma sala da Casa de Dom Inácio de Loyola, o centro de atendimento de João de Deus na pequena cidade de Abadiânia, no interior de Goiás, local onde o guru diz curar os males de mais de 300 000 peregrinos anuais. O algoz, prometendo oferecer “limpeza espiritual”, pedia que as presas tocassem em seu pênis, tocava-as, abordava-as pelas costas, e, de acordo com pelo menos uma acusação, teria cometido estupro com penetração. Dada a quantidade de queixas, criou-se uma força-­tarefa com cinco promotores e duas psicólogas para estimular as denúncias. “Recebemos relatos de moradoras de São Paulo, Goiás, Minas Gerais, Bahia, Paraná e Mato Grosso”, diz a promotora Patrícia Otoni, do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos de Goiás. Na quarta-­feira 12, o MP pediu a prisão preventiva do cirurgião espírita.

João de Deus
DEFESA - O médium na quarta-feira 12: “Quero cumprir a lei brasileira” (Walterson Rosa/Folhapress)

Ao reaparecer em Abadiânia, depois do escândalo, João de Deus foi recebido por pessoas que continuavam a reverenciar seus poderes. Uma senhora gritou contra os jornalistas que acompanhavam a cena: “Vocês terão câncer e voltarão todos aqui para se curar”. Suado e nervoso, o acusado chegou a fazer uma rápida peroração em defesa própria. “Irmãos e minhas queridas irmãs, agradeço a Deus por estar aqui. Quero cumprir a lei brasileira. Estou nas mãos da Justiça”, disse. A depender da narrativa de Dalva Teixeira, filha de 49 anos de João de Deus, feita com exclusividade para VEJA, as dificuldades nos tribunais podem estar apenas começando. “Meu pai é um monstro”, afirma ela.

A VEJA, Dalva contou ter sido coagida, molestada e espancada pelo próprio pai. A violência começou quando ela tinha apenas 10 anos de idade. Num determinado dia, diz, João de Deus chegou em casa e pediu que a menina segurasse uma vela branca. Começava ali um ritual macabro. O médium mandou que ela fizesse uma marcação na vela para delimitar o tempo que duraria o “trabalho espiritual” que ele preparava para a filha. “O pai vai ter de ficar com você até o fogo chegar nessa marca”, disse ele, segundo Dalva. Naquele momento, João de Deus a levou para dentro do quarto e se despiu. “(Ele) começou a passar o pênis no meu corpo todo. Eu falei: ‘Ai, tá me machucando’. E ele continuou em cima de mim.”

João de Deus
REAÇÃO - Mesmo com as denúncias, havia movimentação normal em Abadiânia. Com o pedido de prisão, deu-se o esvaziamento (Evaristo Sa/AFP)

Foi o primeiro de uma série de abusos que se estenderiam por anos (os principais trechos da entrevista de Dalva aparecem no quadro abaixo). O relato é estarrecedor, com palavras simples, em português às vezes incorreto, mas revelações precisas. Os abusos foram se intensificando, cada vez mais violentos. Aconteciam em casa ou nos passeios a que os dois iam juntos. Aconteciam no carro, em quartos em residências de amigos. Prosseguiram durante quatro anos, até Dalva sair de casa, depois de uma cena de brutalidade.

Aos 14 anos, diz, ficou grávida de um funcionário de João de Deus. Viu no relacionamento uma chance de se livrar da agressividade paterna. Ao revelar a gravidez, o médium reagiu com violência. “Ele pisou na minha barriga. Ele dizia: ‘Eu vou te matar, eu vou te matar. Você está grávida’.” Por causa dessa surra, diz ela, perdeu o bebê, mas conseguiu se casar e sair de casa. No entanto, os estigmas a marcariam pelo resto da vida. “Descontei tudo na bebida, na droga”, afirma. “Entrei nessa por desespero, mágoa, sofrimento, porque o pai que conheci com quase 10 anos não foi um pai. Foi a minha destruição.”

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Essas e outras acusações também foram relatadas por Dalva ao Ministério Público na última quarta-feira, 12, e fazem parte de um processo que corre há quatro meses em segredo de Justiça. Ela levanta algumas razões que a impediram de fazer a denúncia antes. Tinha medo de prejudicar os filhos, que até hoje são sustentados pelo avô. Além disso, “vários advogados” não quiseram pegar sua causa porque temiam enfrentar o médium. Por isso, intuiu, o melhor seria “deixar para lá”.

Em 2016, foi  internada em uma clínica de reabilitação para dependentes químicos. Em 2017, os filhos dela, Paulo e João Paulo, ambos já maiores de idade, entraram com uma ação na Justiça contra João de Deus. Pediram uma indenização por danos morais pelo que a mãe sofreu, momento em que revelaram pela primeira vez os abusos do avô. Na ocasião, Dalva conta que foi procurada por João de Deus na clínica onde estava internada. O médium teria dito que, em virtude do processo, a vida dos netos estava em risco. A filha entendeu o aviso como uma ameaça. Relata que, fragilizada e assustada, concordou em estancar a acusação gravando um vídeo, no qual fazia uma declaração pública de que o médium era um bom pai e que nunca a agredira. Era a condição para que nada acontecesse com seus filhos. Em frente à câmera de um celular, ela então desmentiu as acusações de abuso sexual e, acariciando os cabelos do pai, disse que seus filhos decidiram acusar o avô por dinheiro. O vídeo, gravado há um ano e cinco meses,  foi divulgado na terça-feira 11, na página do Instagram do líder espiritual. Era uma tentativa de se defender, pois, a essa altura, já circulava a suspeita de que ele abusara da própria filha.

A despeito de inúmeros relatos de cura e de conseguir despertar a fé na multidão de adoradores, o comportamento de João de Deus com Dalva não surpreende quem já conviveu de perto com ele. Nas palavras de uma amiga da família, que preferiu o anonimato porque teme represálias, “ele é um cavalo e um gentleman ao mesmo tempo; nunca sabemos ao certo o comportamento que terá”.

A sala usada para violentar mulheres, segundo as acusações, é o lugar onde ele sempre atendeu personalidades de todos os espectros: políticos (Dilma Rousseff, Paulo Skaf, Marconi Perillo), juristas (Luís Roberto Barroso), artistas internacionais (Oprah Winfrey, Naomi Campbell) e nacionais (Xuxa, Luciana Gimenez, Giovanna Antonelli, Claudia Raia, Marcos Mion, Fábio Assunção, Daniella Cicarelli). O médium já foi filiado ao extinto PFL. Famosas ou anônimas, ricas ou pobres, as pessoas o procuravam com reveses semelhantes: depressão, dificuldade em gerar um filho, vício em drogas e toda sorte de problemas de saúde, sobretudo câncer. João de Deus gosta de lembrar que, quando incorpora uma das trinta entidades que recebe, não sabe quem é quem, não vê a cor do dinheiro. Na prática, não é bem assim. Ao lado dele, na sala de orações, só se sentam celebridades ou pacientes muito ricos (ou as duas coisas).

João de Deus e a Oprah
FAMA GLOBAL – O guru com a apresentadora americana Oprah Winfrey (acima) e a modelo Naomi Campbell. Depois do escândalo, Oprah tirou de seu site a entrevista que fez com o brasileiro (Monique Renne/CB/D.A Press/Reprodução)
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Orgulha-se de não cobrar nada pelos serviços prestados, o que é verdade. Pessoas muito ricas costumam colaborar quando uma graça é atingida — algo costumeiro nas igrejas católica e evangélica e nos centros de umbanda. O empresário Abilio Diniz esteve em Abadiânia para pedir sua intercessão em prol de um amigo. Teria feito uma transferência de 300 000 reais (Abilio confirma a doação, mas diz ser um valor menor). A socialite Cata Pires e o empresário André Pires Oliveira Dias (herdeiro da Camargo Corrêa) creditam ao médium o fato de terem conseguido conceber um filho — e foram generosos em doações. José Seripieri Júnior, fundador da Qualicorp, e a mulher, Daniela Filomeno, também são devotos. O trânsito com os poderosos faz João de Deus viajar sempre para São Paulo, em avião comercial ou jatos particulares, para prestar serviços mediúnicos. Ex-­candidato ao governo de São Paulo, o empresário Paulo Skaf prepara churrascadas para o amigo, com a carne sempre muito bem passada.

Os negócios de João de Deus não se limitam às questões espirituais. Ele é dono de mais de vinte casas em Abadiânia, tem residência em Anápolis e apartamento em Goiânia. No passado, foi dono de duas fazendas de extração de esmeralda e ouro — jacta-se de uma vasta coleção de joias. Chegou a ser investigado pelo Serviço Nacional de Informação  (SNI), no início dos anos 1980, por contrabando de autunita (veja o quadro abaixo). Dentro do centro espírita, mantém três comércios: uma lanchonete, uma livraria e uma loja de cristais. Um dos produtos de maior saída é a água abençoada por ele, ao preço de 3 reais a garrafinha de 500 mililitros. Há devotos que despacham malas e malas de água para suas cidades de origem. O lucro mais robusto fica com os cristais.

João Teixeira de Faria nasceu há 76 anos em Cachoeira da Fumaça, a atual Cachoeira de Goiás, filho de um alfaiate e uma dona de casa católicos. Ele conta ter tido sua primeira premonição ao prever que um temporal destruiria casas da região. A tragédia teria se consumado, e ele ganhou projeção local. Outras visões se deram até ter tido a ideia de usar seu dom para curar pessoas. Abriu a casa Dom Inácio de Loyola em 1976. Ele se diz um instrumento de Deus e, cauteloso, pede aos seus clientes que nunca interrompam os tratamentos com medicamentos e terapias convencionais. A fama fora do Brasil foi alcançada em 1991, quando a atriz Shirley MacLaine se tratou em Abadiânia de um câncer na região abdominal. Em 2011, o ex-presidente Lula declarou fazer tratamento espiritual com João de Deus para tratar um câncer na laringe. No ano seguinte, 2012, a apresentadora americana Oprah Winfrey foi de avião particular até Abadiânia gravar uma entrevista com John of God. Pressionada pelas redes sociais, na semana passada ela tirou da internet a entrevista feita com o brasileiro.

Se confirmados todos os mais de 300 casos de abuso e violência sexual, neles incluído o da filha Dalva, João de Deus pode ter destino mais sombrio do que o do médico Roger Abdelmassih, condenado a 278 anos de prisão sob a acusação de ter estuprado 39 mulheres. Abdelmassih cumpre pena em prisão domiciliar desde outubro de 2017. João de Deus não está sozinho na lista de líderes religiosos que prometem mundos e fundos, mas depois são descobertos como charlatões e abusadores. O indiano Maharishi Mahesh Yogi (1918-2008), conhecido como o guru dos Beatles, caiu em desgraça quando os quatro integrantes da banda souberam de uma tentativa de abuso contra a atriz Mia Farrow em uma viagem à Índia, em 1968. Tema da série documental Wild Wild Country, o guru indiano Bhagwan Shree Raj­neesh (1931-1990), o Osho, foi expulso dos Estados Unidos por organizar casamentos forjados, burlar leis de imigração e ter funcionários que coordenaram um ataque bioterrorista contra a população da pequena cidade de ­Antelope, no Oregon. No Brasil, o guia espiritual Sri Prem Baba foi acusado de abusar de pelo menos duas mulheres. Ele confirma as relações sexuais, mas alega terem sido consensuais — antes, contudo, se dizia celibatário. Desmascarados, os líderes espirituais não conseguem voltar à tona, mesmo quando escapam da cadeia. Mantêm muitos seguidores, em alguns casos ainda atraem adoração, na condição de mártires injustiçados, mas já sem a luz que os fez celebrados. As acusações contra João de Deus são numerosas e graves, precisam ser investigadas com esmero e cuidado.


A seguir, a entrevista de Dalva Teixeira a VEJA.

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Trecho 1: “Ele passava o pênis no meu corpo”


Trecho 2:  “Ele pisou na minha barriga”

Como era a relação da senhora com seu pai? Um dia, minha mãe me puxou e disse: “Venha conhecer seu pai”. Eu tinha 9 anos. A gente era criada na roça, de família humilde. Aí chegou aquele homem, poderoso. Eu olhei e disse: “Não, esse homem não é meu pai”. Mas era. Minha mãe pediu que ele me levasse para a cidade, para eu estudar. Ele me trouxe para Anápolis, para morar com ele. Começou aí todo o inferno da minha vida.

A senhora pode explicar melhor? Inferno foi a primeira vez que ele ficou comigo, aos 10 anos. Ele teve uma briga feia com minha madrasta. Logo depois, chegou da fazenda, pegou uma vela branca, mandou que eu a marcasse com a unha. Ele disse assim: “O pai vai ter de ficar com você até o fogo chegar a esta marca. Vou fazer um trabalho espiritual com você”. Eram umas 9, 10 horas da noite de um fim de semana. Aí ele me levou para dentro do quarto dele e tirou minha roupa toda. Perguntei o que ele ia fazer. Ele respondeu: “O pai vai fazer um trabalho espiritual para você com Dom Inácio de Loyola”. Então ele ficou pelado, começou a passar o pênis no meu corpo todo e me penetrou. Eu disse: “Ai, tá me machucando”. E ele continuou em cima de mim.

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O que ocorreu depois disso? No outro dia de manhã, acordei cedo para ir ao colégio. Eu e meus irmãos estávamos na mesa. Ele tomou uma xícara de café, olhou pra mim e fez assim (sinal de silêncio). Depois de um mês, minha madrasta morreu. Aí, ele arrumou uma viagem para a Bahia. Fomos eu, meu pai e mais duas pessoas. Eu e meu pai fomos no banco de trás. Ele tirou minha calça e colocou o dedo na minha vagina. A gente chegou em Santa Maria da Vitória. Lá, na casa de uma amiga da família, havia duas camas de solteiro. Ele ficou na minha. No outro dia cedo, ele bagunçou a cama lá, para fazer de conta que tínhamos dormido em camas separadas.

Até quando duraram os abusos? Essa tortura durou até os 14 anos, quando meu pai descobriu que eu estava grávida de outra pessoa. Ele me bateu muito, com vara de ferrão, com aquele negócio de laçar boi que tem uma bola de cimento na ponta. Tenho a cicatriz até hoje. Ele disse que eu não ia casar. Pisou na minha barriga. Dizia: “Eu vou te matar, eu vou te matar, você está grávida”.

O que aconteceu depois dessa agressão? Fui para o hospital e, depois, fiquei um tempo na casa de uma tia, onde me recuperei. Mas perdi o bebê. A relação com meu pai sempre foi uma coisa fora do normal. Parece uma coisa satânica. Depois de uma semana, me casei. Um mês depois, ele estava pressionando para que eu me divorciasse.

Houve outros abusos nesse período? Fiquei casada até os 20 anos. Quando me divorciei, voltei a morar na casa do meu pai. Ele me colocou num apartamento no fundo da casa. E começou tudo de novo. Meus filhos pequenininhos… Ele subia para o quarto, mantinha relação sexual comigo e ia embora. Eu fazia aquilo para ter onde morar, para manter meus filhos.

A senhora nunca conseguiu reagir? Teve um dia em que cansei. Fui até Abadiânia. Eu estava com muita dor de cabeça. Ele chegou no meio do povo, me chamou e levou para dentro do tal quarto que as mulheres estão denunciando aí. “Vem cá, você está com a cabeça doendo?” Começou a fazer uma massagem. Dormi sentada assim, hipnotizada, sabe? Então ele se despiu todo, tirou minha roupa, isso e aquilo… Eu joguei uma almofada nele e disse: “Acabou. A partir de hoje, acabou”. Ele retrucou assim: “Então, acabou carro, acabou filho, acabou vida boa, acabou tudo, você vai passar fome”. Ele me tirou carro, me tirou casa, comida, não pagou mais o aluguel, ao ponto que eu não tinha mais dinheiro. Aí, passei a usar droga. Entrei nessa por desespero, mágoa, sofrimento, porque o pai que conheci com quase 10 anos não foi um pai, foi minha destruição.

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Por que a senhora considera que ele foi a sua destruição? Ele é um monstro. Um pai que transa com a própria filha é um monstro.

Por que a senhora só decidiu denunciar o seu pai agora? Já procurei vários advogados. Ninguém nunca quis encarar, por medo, porque ele é uma influência mundial. Eu, quem sou eu? Ninguém. A influência dele é muito grande. Ele é um homem muito poderoso, muito rico. E é uma pessoa que não tem escrúpulo. Eu tinha medo não por mim, mas pelos meus filhos. Não acho justo passar o que eu passei, vivendo na rua, passando fome. Levei para a Justiça porque quero me cuidar, quero me tratar, quero ter uma vida digna, junto com meus filhos. Quero ter uma vida de conforto e poder receber meus filhos numa casa, num almoço, no domingo, receber meus netos.

O que a senhora achou das outras dezenas de acusações relacionadas ao seu pai? Nenhuma dessas mulheres mentiu. Eu sei que elas estão dizendo a verdade. E isso eu senti na pele. Eu sofri. Ele dizia que não existia Deus, que Deus era ele. Ele dizia: “Eu sou Deus”.


“O indivíduo João Teixeira de Farias (sic)

Documento João de Deus
NO PAPEL – Relatório do SNI que cita João de Deus: contrabandista (//Reprodução)

Na década de 80, João de Deus foi vigiado pelo antigo Serviço Nacional de Informações (SNI). Na época, ele já realizava curas espirituais na Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia, interior de Goiás. O que pouca gente sabe é que, nas horas vagas, o médium exercia outra atividade: a de contrabandista. João foi preso pela Polícia Federal em 1985 transportando 1 tonelada de autunita, um mineral radioativo, valioso e raro, extraído de um garimpo clandestino. A carga estava sendo levada para o aeroporto de Alto Paraíso, também no interior de Goiás, onde seria embarcada. De lá, seguiria de avião até a Guiana. Nos arquivos do SNI constam pelo menos três relatórios citando o envolvimento de João de Deus com a quadrilha. Em um dos documentos, os agentes anexam o depoimento prestado pelo médium à polícia, no qual ele confessa o crime.

Um dos relatórios registra que o médium foi preso em 5 de novembro de 1985 em companhia de um sobrinho (Wagner Gonçalves) e outros três homens (Jerônimo Pereira, Benedito Oliveira e Diomar Cruz), na cidade goiana de Dianópolis, hoje no Tocantins. O grupo estava bem armado e a bordo de uma caminhonete. João de Deus tinha um revólver na cintura. Ele admitiu que usava sua fazenda, em Abadiânia, para esconder a mercadoria e que também era o financiador da operação.

Se a PF não tivesse feito a interceptação, João de Deus teria faturado 2,5 bilhões de cruzeiros, o equivalente hoje a cerca de 3,5 milhões de reais. A extração de autunita era fiscalizada por órgãos do governo ligados à política de segurança nacional do regime militar, já que o minério é rico em urânio, matéria-prima para a produção de artefatos nucleares. Após as prisões, o SNI pediu à PF que levantasse mais informações sobre os envolvidos — em especial sobre João de Deus, identificado, na época, apenas como o “indivíduo João Teixeira de Farias (sic)”.

Hugo Marques


“Ele não sente remorso”

Aline Saleh
NO BANHEIRO – Com o pênis de fora, ele dizia que iria “realinhar chacras” (Claudio Gatti/.)

“Em 2013, cheguei à sala de João de Deus com a minha avó, mas imediatamente ele sugeriu que ela fosse almoçar: ‘A senhora deve estar com fome, não?’. Logo em seguida, apareceu uma mãe com o filho especial. Irritado com a presença deles, o médium ordenou que eu desse um passe na criança. Fiquei aflita. Nunca tinha feito aquilo na minha vida. Mas fiz o que ele mandou, e os dois saíram. João de Deus se levantou e trancou a porta. Sentou-se no sofá, tendo às costas uma prateleira com fotos dele ao lado de personalidades. Ele disse que precisava realinhar os meus chacras porque as minhas energias estavam bagunçadas. Fiquei de pé, e ele pôs a mão na minha testa, garganta, timo e umbigo. Em um movimento brusco, o médium me levou até o banheiro. Ali, virou-me de costas. Fiquei atônita, não entendi aonde ele queria chegar. João de Deus disse que liberaria a energia kundalini, a mais especial do corpo. Pediu que eu colocasse a mão nos meus quadris e me movimentasse. Então pegou a minha mão e a aproximou dele. Eu a tirei, num reflexo rápido. Mas João de Deus segurou a minha mão de novo. Dessa vez eu me virei. Vi parte do pênis, sem ereção, para fora da calça. Disse que aquilo estava errado, eu não queria mais saber de chacras. Como se nada tivesse acontecido, ele abriu a porta e pediu que chamassem a minha avó. Sentado no sofá, disse que eu estava com a energia renovada. Não apresentou remorso algum. Caí em prantos ao sair de lá.”

Aline Saleh, empresária

Publicado em VEJA de 19 de dezembro de 2018, edição nº 2613

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