Luxo do agro: como Goiânia virou uma das cidades que mais crescem no país
Lá, a pujança do dinheiro do setor deu frutos como em nenhum outro lugar do Brasil
Um dos lugares mais luxuosos e deslumbrantes da Itália, o Lago de Como, aos pés dos Alpes, já serviu de cenário para filmes de Hollywood, a exemplo de Doze Homens e Outro Segredo, cujo protagonista, George Clooney, na vida real, é dono de um dos palacetes por ali. Nos últimos tempos, entre vários sotaques de visitantes ouvidos por lá, o arrastado “r” da turma de Goiânia começou a ser notado com mais frequência em baladas de fazer inveja a magnatas russos, em gastos que chegam à casa de 30 milhões de reais. Exemplo dessa riqueza originada no Centro-Oeste que atravessa o Atlântico, o casal formado por membros do high society da capital de Goiás, a influenciadora Bruna Kehrnvald e o empresário Manoel Neto, comemorou o matrimônio em julho do ano passado ao lado de 300 convidados. Foram 72 horas de celebrações em alguns dos endereços mais disputados da região, como a Villa Gastell, que já foi um convento beneditino, e o Hotel Villa d’Este, um dos mais famosos do mundo desde 1873, quando passou a receber hóspedes. “Fui pedida em casamento numa viagem que fizemos a Como e, por isso, voltamos para selar lá nossa união”, conta Bruna. “Foi um sonho.”
O dinheiro de Goiânia, semeado em grande parte pela pujança do agronegócio, não irriga apenas as engrenagens financeiras do exterior. São Paulo é uma das paradas obrigatórias desse capital. Shoppings sofisticados da maior metrópole do país vivem estendendo o tapete vermelho a consumidoras vindas do Centro-Oeste. Serviços de luxo variados, de cabeleireiros estrelados a joalheiros em alta cotação, também se habituaram a receber — e a lucrar — com esse público. “A cliente de Goiânia tem alto poder aquisitivo. O que não encontra por lá ela vem buscar aqui em São Paulo”, conta o designer Paulo Teixeira, que fez fama ao criar, sob medida, um colar de esmeraldas para a cantora Marília Mendonça, morta em um acidente aéreo, em 2021, quando era embaixadora não só da música sertaneja, mas também da capital de Goiás, onde cresceu e fez carreira. Algumas peças exclusivas criadas por Teixeira, com vários quilates de diamantes, chegam a custar 1 milhão de reais. “Em alguns meses, recebo até sete clientes de Goiânia”, contabiliza.
Boa parte desse dinheiro fica dentro de casa, ajudando a transformar a cidade do Centro-Oeste numa das capitais que crescem mais rápido no país. O mercado imobiliário local é um dos melhores termômetros para medir o ritmo impressionante desse progresso. Nos bairros Bueno e Marista brotam empreendimentos nos terrenos ainda disponíveis. O preço dos imóveis residenciais teve um aumento de 18,2% de 2022 para 2023, segundo a Associação das Empresas do Mercado Imobiliário de Goiás, acima da média nacional. O valor geral de vendas dos empreendimentos saltou 130% — de 2,6 bilhões de reais, em 2014, para quase 6 bilhões de reais, em 2023 — alcançando o posto de terceiro maior mercado nacional, atrás apenas de São Paulo e Rio. O setor já negocia imóveis residenciais de alto padrão a quase 14 000 reais o metro quadrado e oferece luxos personalizados aos clientes, que incluem irrigação automatizada de floreiras e até elevador exclusivo para carros, privilégio dos moradores do Victorian Living Desire, único prédio do país que permite aos proprietários subir com o veículo e estacionar dentro do apartamento. “É bem diferenciado mesmo e facilita a vida quando fazemos compras ou trazemos coisas da fazenda”, diz o empresário Edwaldo Stival, dono de uma BMW 745L.
Dar uma volta pelos bairros nobres da cidade, aliás, é acompanhar um desfile de veículos importados pelas ruas, especialmente nos fins de semana e nos arredores do Flamboyant Shopping, o principal polo de luxo da cidade, onde a classe alta de Goiânia consome grifes internacionais como Gucci, Dolce&Gabbana, Giorgio Armani, Louis Vuitton e Bulgari, que só têm unidades próprias na capital de Goiás e de São Paulo. Recentemente, abriu por lá uma butique da Montblanc, com vitrines exibindo os famosos relógios suíços e outros produtos caros. Ali perto, a concessionária da Porsche vende quase um carro por dia e a gigante das picapes, a RAM, comercializa entre 45 e cinquenta unidades por mês, com foco total no cliente do agronegócio. Para facilitar as vendas, a marca americana chegou a negociar em dólar ou mesmo em grãos. “Goiânia é a Dallas brasileira”, afirma o vice-presidente da RAM para a América do Sul, Juliano Machado, referindo-se à cidade símbolo de riqueza no campo nos Estados Unidos.
Não por acaso, referências em diversas áreas do setor de serviços começam a desembarcar em Goiânia. Assim, aos poucos, a cidade se transforma com escolas e hospitais de ponta, sendo que uma das mais recentes pitadas de mudança veio na forma da abertura de restaurantes locais comandados por chefs renomados, como é o caso de Ian Baiocchi. Depois de estudar gastronomia na Europa e trabalhar com nomes badalados como Alex Atala e Helena Rizzo, em São Paulo, ele fez as malas rumo ao Centro-Oeste. Dono de cinco estabelecimentos e duas sorveterias na cidade, o chef virou celebridade a partir do sucesso de seu rooftop, o Grá Bistrô do Edifício Órion, de onde se tem uma vista privilegiada do horizonte. A competição vai se tornando mais acirrada nesse mercado. No ano passado, o grupo Alife Nino, dono de quinze marcas e 41 operações, inaugurou a primeira unidade do italiano Nino Cucina no setor Bueno, com casa cheia especialmente no almoço, onde salas reservadas atraem executivos. Ainda neste semestre o francês Claude Troisgros, estrela de programas de TV, promete abrir os restaurantes Cucina Mia e Mon Bistrô no Flamboyant Shopping, que tem disputa por espaços e fila para novas lojas nacionais e internacionais — a Chanel será a próxima a se mudar para lá. “Apesar de todo esse crescimento, Goiânia ainda é sinônimo de qualidade de vida”, conta Bruna Kehrnvald, que se casou na Itália, mas vive com o marido em um apartamento de luxo na cidade. “A tranquilidade não tem preço”, acrescenta.
Toda essa evolução econômica local está diretamente ligada ao agro. Em 2023, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a agropecuária brasileira cresceu 15,1%, movimentando 677,6 bilhões de reais e puxando para cima o produto interno bruto do Brasil, que aumentou 2,9% em relação a 2022. A alta recorde do setor — o número é o maior da série histórica, iniciada em 1995 — teve impacto direto nos estados produtores, como Goiás, onde a expansão do PIB foi de 4,4%, bem acima da taxa nacional. “A localização da cidade no mapa do país proporciona muitos outros tipos de investimentos, como indústria, setor imobiliário e de serviços. Isso com mão de obra especializada e operações mais baratas do que no eixo Rio-SP. É, sem dúvida, o mercado da vez”, destaca Rodrigo Neiva, diretor comercial do Antares Polo Aeronáutico, o futuro aeroporto que deve ser inaugurado até o fim do ano na cidade vizinha, Aparecida de Goiânia. Dedicado à aviação executiva, a expectativa é de que o negócio tenha 100 aeronaves em operação por mês. Hoje, o trecho SP-Goiânia, feito de jatinho, sai por 70 000 reais.
A aposta do setor se baseia no fato de Goiânia ter se tornado não só a capital do Centro-Oeste, mas também de estados produtores da Região Norte, especialmente o sul do Pará e do Tocantins. Com mais estrutura, segurança e uma gama cada vez maior de serviços de alto padrão a oferecer, na comparação com Belém e Palmas, a capital de Goiás passou a rivalizar com municípios do Sudeste na disputa por investidores, estudantes e pacientes de centros médicos modernos e de marca, como a rede Albert Einstein, que escolheu a cidade para abrir sua primeira unidade fora de São Paulo. O poder aquisitivo dos fazendeiros do estado e região — e de seus herdeiros — também explica parte do sucesso. Entre 2017 e 2022, segundo o Observatório de Política Fiscal da FGV, o rendimento do 0,1% dos mais ricos cresceu 42%, acima da inflação média nacional, mas nos estados dominados pelo agronegócio essa alta foi bastante superior — de 67% em Goiás (quinto do ranking), 99% em Mato Grosso do Sul e 117% em Mato Grosso, o líder da lista. O reflexo do levantamento feito pelo economista Sérgio Wulff Gobetti, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), pode ser visto em outra lista, a dos mais ricos do mundo. Segundo a Forbes, dezoito brasileiros com negócios nas cadeias produtivas do agro figuram nesse ranking.
A locomotiva econômica do agro ajudou ainda a soltar as rédeas da indústria da música sertaneja que, aos poucos, virou um elemento-chave do que se poderia chamar de soft power goiano. Alguns dos artistas mais populares desse mercado decidiram permanecer na cidade mesmo após alcançar fama nacional, quebrando a lógica de que quem quer ser visto deve morar e frequentar o eixo Rio-SP. São exemplos desse comportamento a dupla Maiara e Maraisa e os cantores Gusttavo Lima e Zé Felipe, marido de Virginia Fonseca. O casal, aliás, soma seguidores ao expor nas redes sociais detalhes da construção de uma nova mansão em um dos condomínios horizontais mais disputados, o Residencial Aldeia do Vale, onde o valor do metro quadrado pode passar de 18 000 reais. Erguido em um terreno de 7 000 metros quadrados, o imóvel dos artistas tem sete suítes, sauna nos banheiros e jardim de inverno climatizado. Na área de lazer anexa, que será acessada por um carrinho de golfe, o projeto prevê ainda ofurô para doze pessoas, salão de beleza, brinquedoteca e uma piscina de 150 000 litros com cobertura automatizada.
O clima de sucesso é compartilhado por políticos locais, que festejam os resultados positivos do agro, surfam nas preferências conservadoras do eleitorado e já projetam voos mais altos, a exemplo do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), primeiro pré-candidato declarado à próxima corrida pelo Palácio do Planalto. Caiado esteve recentemente na Agrishow, no interior de São Paulo, ao lado do governador paulista Tarcísio de Freitas e do ex-presidente Jair Bolsonaro. A pretensão do governador goiano é amparada por conquistas como os bons indicadores econômicos exibidos pelo estado e avanços na área de segurança, o que lhe conferiu uma taxa de aprovação de 86% entre os eleitores. Nas rodas de conversas pela cidade, pode haver dúvidas se o projeto nacional de Caiado vai sair do chão, mas o que é indiscutível é o orgulho provocado pela ascensão da capital. “As pessoas ainda acreditam que Goiânia é roça, mas isso é preconceito”, afirma o estilista Tomtom Fonseca, que atende clientes como o cantor Mateus, da dupla Jorge & Mateus. De fato, a cara de Goiânia mudou para sempre: ela é agora o exemplar mais cintilante do luxo do agro.
Publicado em VEJA de 3 de maio de 2024, edição nº 2891