Lula sai fortalecido da aproximação com os EUA, mas imprevisibilidade de Trump é desafio
Governo comemora abertura de canal de diálogo com Washington, enquanto a oposição festeja a escolha do mediador do conflito

As versões do governo e da oposição são diferentes, mas o fato é um só: na segunda-feira 6, os presidentes do Brasil, Lula, e dos Estados Unidos, Donald Trump, conversaram durante meia hora por telefone, estabelecendo finalmente um canal de comunicação que começou a ser aberto, no fim de setembro, quando os dois trocaram cumprimentos por trinta segundos nos bastidores da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). A equipe de Lula comemorou o telefonema como uma oportunidade de negociar a revogação ou a redução do tarifaço imposto às exportações brasileiras. Celebrou também o fato de Trump não ter mencionado o nome de Jair Bolsonaro, cuja situação judicial contribuiu para que o governante americano anunciasse sanções à economia e a autoridades brasileiras. O ex-presidente, que teria contaminado a relação bicentenária entre os dois países, estaria sendo deixado de lado pelos Estados Unidos, conforme análise corrente no Palácio do Planalto. Já Lula, festejado pelos assessores como um encantador de serpentes, teria seduzido mais um potencial adversário.

Os bolsonaristas, obviamente, pensam diferente e desdenham dessa análise. Eles dizem que, em vez de uma aparente vitória, o governo petista recebeu uma péssima notícia, já que Trump designou para negociar com a equipe de Lula o secretário de Estado dos Estados Unidos, Marco Rubio, que é próximo do deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), crítico da atuação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes e entusiasta da aplicação da Lei Magnitsky como instrumento de pressão sobre autoridades brasileiras. A análise no entorno do capitão é a seguinte: se Trump pareceu assoprar, Rubio certamente morderá e não dará vida fácil ao Brasil. “O secretário Rubio conhece bem a América Latina. Sabe muito bem como funcionam os regimes totalitários de esquerda na região. Sabe como o Judiciário foi instrumentalizado como ferramenta de perseguição política. Ele não cairá nesse papo furado de regime de independência de um Judiciário aparelhado. A escolha de Trump só complica o regime de exceção. Golaço”, escreveu Eduardo Bolsonaro numa rede social.
Responsável pela diplomacia americana, Rubio tem gosto especial pelo embate. Ele comanda a reformulação da política externa americana, marcada até agora por tarifaços e ameaças bélicas destinadas à obtenção de vantagens econômicas e estratégicas. Uma de suas características é bater de frente com governos considerados hostis. Filho de imigrantes cubanos e ferrenho anticastrista, sua mira recai sobre países comandados pela esquerda, em especial na “vizinhança” da América Latina, que, segundo ele, estaria sob influência cada vez maior da rival China. No caso específico do Brasil, o secretário liderou uma represália ao programa Mais Médicos, que teve massiva participação de cubanos durante a gestão Dilma Rousseff. Como parte da ofensiva, a esposa e a filha do ministro da Saúde, Alexandre Padilha, que ocupava o mesmo cargo no mandato da petista, tiveram os vistos revogados. Rubio também defendeu publicamente a aplicação da Magnitsky a Alexandre de Moraes: “Que seja um aviso para aqueles que atropelam os direitos fundamentais de seus compatriotas — as togas judiciais não podem protegê-los”.
Senador durante catorze anos pela Flórida, onde cresceu entre cubanos fugidos da revolução castrista, Rubio chegou a desafiar Trump nas prévias republicanas de 2016. Na época, ganhou do agora presidente o apelido jocoso de “Little Marco”, devido à sua altura modesta. Mas logo entendeu a mudança de ventos, recalculou a rota e se tornou um seguidor fiel da cartilha trumpista, sendo recompensado com o Departamento de Estado no segundo mandato de Trump. Outrora porta-estandarte do soft power do país, Rubio hoje comanda a diplomacia sob o mantra “paz através da força” e integra a ala ideológica do governo. Ele comprou briga para eleger a presidente do órgão de direitos humanos da OEA, a cubana Rosa María Payá, a fim de pressionar com mão firme ditaduras de esquerda, e eliminou departamentos que promovem a democracia pelo mundo. É o que petistas chamam de radical de direita. Um suposto extremista que tem uma amizade de sete anos com Eduardo Bolsonaro. Não é à toa, portanto, que o deputado autoexilado ainda aposte as fichas no secretário.
Lula, o chanceler Mauro Vieira e ministros envolvidos nas negociações com os Estados Unidos, como Geraldo Alckmin (Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços) e Fernando Haddad (Fazenda), conhecem o perfil de Rubio. Eles lembram, no entanto, que quem manda é Trump e que o secretário fará o que o chefe determinar. Essa regra é universal. Vale tanto lá como cá. Na quinta-feira 9, Rubio convidou o chanceler Mauro Vieira, numa conversa por telefone, para viajar a Washington em data próxima, que ainda será definida, a fim de que possam tratar dos temas prioritários entre Brasil e Estados Unidos. O diálogo entre os dois, segundo o Itamaraty, foi muito positivo. “Lula e Trump conversaram por telefone e marcaram um encontro presencial. Não sei como fica aquele grupo que passou os últimos meses incentivando a taxação e apostando no afastamento entre os dois países, mas sei que esse é um passo importante para restaurar as relações históricas entre Brasil e Estados Unidos”, afirma o senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), líder do governo no Congresso. O encontro presencial pode ocorrer na Malásia, no Brasil ou nos Estados Unidos. Ainda não há uma definição, mas, pelo menos nas aparências, sobra boa vontade entre os presidentes.

Após o encontro na ONU, Trump disse que rolou uma química com Lula, que, por sua vez, admitiu ter pintado um clima entre os dois. Na conversa telefônica, ambos, perto dos 80 anos, falaram da idade e do vigor que teriam. Concordaram ainda que ter uma causa ajudava na vitalidade. Cordialidades à parte, há interesses gigantescos na mesa de negociação. Lula pediu o fim do tarifaço e das sanções a autoridades brasileiras. Trump, em situações anteriores, mostrou contrariedade com a possibilidade de regulação das big techs no Brasil e interesse numa parceria para explorar minerais críticos. Os dois presidentes concordaram que a prioridade é a pauta econômica, o que pode facilitar, mas não garante, o sucesso das conversas. Desde o anúncio do tarifaço, em julho, o governo brasileiro conta com a ajuda de empresários, como Joesley Batista, dono da JBS, a maior processadora de carne bovina do mundo, para dialogar com o parceiro do Norte. Os empresários lembram o óbvio: que as sobretaxas encarecem os produtos para os consumidores dos Estados Unidos.
Na conversa com Lula, Trump chegou a dizer que os americanos estão sentindo falta do café brasileiro, que caiu em vendas depois que o preço subiu. Diretor-geral do Conselho dos Exportadores de Café do Brasil (Cecafé), Marcos Antonio Matos diz que a ligação entre os presidentes abre a possibilidade de redução na tarifa de exportação do produto, mas que a escolha de Marco Rubio como chefe das tratativas gera certa preocupação no mercado. “Ao escolher o secretário, obviamente a gente fica preocupado com a dimensão política que as discussões podem ganhar, mas é o direcionamento de Trump que vai dizer qual o tamanho dessa dimensão”, afirma Matos.

Por enquanto, Lula é grato a Trump. O anúncio do tarifaço pelo presidente americano como forma, entre outros, de livrar Jair Bolsonaro de uma condenação pelo STF deu ao petista — que até então comandava uma gestão sem marca e sem rumo — um discurso: o da defesa da soberania, da economia e dos trabalhadores brasileiros. Essa bandeira, somada à queda do preço dos alimentos e à adoção de uma série de bondades, como gás e luz de graça para a população mais pobre e a expansão do Minha Casa, Minha Vida (leia a reportagem na pág. 46), ajudou o petista a recuperar popularidade. Segundo pesquisas Genial/Quaest, a aprovação ao governo atingiu seu maior nível deste ano em outubro, 48%, empatado com a reprovação, 49%. Em maio, o saldo negativo era de 17 pontos. Nas sondagens sobre a próxima corrida presidencial, Lula também continua firme na liderança nas simulações de primeiro e segundo turnos. A vantagem sobre o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, o nome preferido do Centrão e de setores econômicos para enfrentar o presidente em 2026, passou de 8 para 12 pontos entre setembro e outubro. Foi justamente nesse período que rolou a química entre Lula e Trump. Para 49% dos entrevistados pela Genial/Quaest, o presidente brasileiro saiu fortalecido após a conversa entre os dois na ONU. Só 27% afirmam o contrário. Até aqui, o americano, em suas diferentes versões, tem servido de trampolim ao petista. Nada que não possa ser implodido de uma hora para outra, já que Trump, como se sabe, é completamente imprevisível.
Publicado em VEJA de 10 de outubro de 2025, edição nº 2965