Jovens estão trocando a monogamia por relacionamentos abertos
Nestes tempos modernos, a internet oferece um leque variado de opções amorosas
Já famosos e celebrados, em meados do século passado os filósofos franceses Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir chocavam o mundo com seu escandaloso relacionamento: formavam um casal que vivia cada um em sua casa, sem filhos e receptivos a envolvimentos amorosos com outras pessoas. Fosse hoje, a relação aberta dos papas do existencialismo — bem mais existencial para ele do que para ela, diga-se — não seria vista com tanta surpresa. Mergulhadas em sua individualidade, o motor dos tempos modernos, e impulsionadas pela facilidade de encontrar parceiros via internet, as novas gerações parecem cada vez mais dispostas a desatar as amarras da monogamia e se deixar levar pela tentação da carne, tudo devidamente combinado e acordado entre as duas metades da laranja. “As pessoas vêm perdendo o interesse em se fechar em um contrato a dois, cheio de possessividade. Não me surpreenderia se, daqui a algumas décadas, mais casais optem por ligações abertas do que pelas que exigem exclusividade”, diz a psicanalista Regina Navarro Lins, autora de livros sobre o tema.
As relações abertas modernas são consensuais e igualitárias, praticadas por casais que admitem contato sexual com outras pessoas, mas mantêm o companheiro ou companheira como prioridade. “Há pessoas que não se adaptam à exclusividade e precisam buscar alternativas para viver um relacionamento saudável”, avalia Carmita Abdo, psiquiatra e coordenadora geral do Projeto Sexualidade do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. “Mas não é para todo mundo. Demanda muito equilíbrio entre as partes, comunicação, maturidade e, claro, desapego”, avisa ela, que ainda acrescenta a ressalva: “Muitas mulheres, principalmente, fazem a concessão para tentar salvar o casamento, mas assim que percebem o que de fato significa, tudo vai por água abaixo”.
Não há números que comprovem a crescente prática da relação aberta no Brasil, mas basta uma pesquisa na internet — e olhar em volta, no caso dos mais jovens — para confirmar a tendência. A gaúcha Teca Curio, de 39 anos, é coordenadora da Rede Relações Livres (RLi), um coletivo que reúne não monogâmicos em todo o Brasil. Casada há 21 anos, viveu com o marido, Alessandro, um casamento tradicional por mais de uma década, mas aos poucos começou a notar que ambos gostariam de ficar com outras pessoas. “Não queríamos enganar um ao outro. Antes que nos magoássemos, decidimos abrir a relação”, diz Teca, que passou a pesquisar sobre o tema e foi conhecendo os demais membros do grupo. “A monogamia criou um peso enorme nos primeiros anos de casamento, gerava competitividade e ciúme. Agora resolvemos tudo com diálogo”, afirma. Teca e Alessandro são tão bem resolvidos em sua decisão que passaram o conceito para a filha, de 21 anos, também avessa à monogamia. Mas o casal até hoje enfrenta resistência, inclusive da família dele. “É porque incomoda, mexe no mito do príncipe encantado”, acredita ela.
A ideia de adicionar terceiros à equação do casal seria, de certa forma, uma volta às origens das relações comunitárias, quando homens e mulheres não tinham parceiros fixos e as crianças eram responsabilidade de todos. O conceito de família começou a se desenhar há cerca de 5 000 anos, com a invenção da propriedade privada e, por tabela, da herança — fórmula facilitada pela existência de um núcleo familiar definido. Daí para a imposição da fidelidade foi um passo e a posterior associação do amor romântico ao casamento direcionou os seres humanos, definitivamente, para as convenções sociais que ainda prevalecem. A corrente que prega a quebra de restrições nunca deixou de existir, crescendo ou minguando de acordo com a conjuntura social e política. Agora, pegando carona na opção preferencial de cada um por si, está em viés de alta. “A juventude atual explora sua sexualidade cada vez mais cedo e com mais liberdade, sem tantas amarras”, diz Stella Schrijnemaekers, professora da Escola de Sociologia e Política de São Paulo (ESP-SP).
As redes sociais e os aplicativos de namoro, que ampliam as possibilidades para conhecer pessoas e marcar encontros sexuais, abriram caminho para a expressão dos novos sentimentos. A atriz Fernanda Nobre, que há três anos vive um casamento aberto com o dramaturgo José Roberto Jardim, explica que foi atraída pela liberdade oferecida às mulheres pela não monogamia — e hoje não se vê vivendo de outra forma. “No início tive de lidar com o medo de, quem sabe, estragar a nossa relação. Mas tudo mudou conforme amadurecemos”, contou em vídeo postado em seu Instagram. “Acho que atingimos, sim, a igualdade que eu tanto reivindicava.”
Um estudo desenvolvido nos Estados Unidos pelo economista David K. Levine, professor do Instituto Universitário Europeu, mostrou que entre 4% e 9% dos adultos americanos estavam envolvidos em algum tipo de relação aberta em 2020. No Brasil, as pesquisas pela pergunta “o que é relacionamento aberto?” aumentaram 70% nos últimos doze meses, enquanto a busca por “relacionamento aberto significado” cresceu 300%. “Recebo com frequência em meu consultório pacientes com dúvidas sobre como poderiam trazer essa discussão ao casamento para melhorar sua dinâmica ou solucionar o problema da falta de sexo após muitos anos”, diz Regina Navarro Lins. “A curiosidade é um sintoma de que o modelo amoroso da nossa cultura não está mais funcionando para todos.”
Honestidade e independência foram as engrenagens que fizeram o professor de educação física Flávio Chiari, de 27 anos, se envolver em seu primeiro namoro não exclusivo, há cerca de cinco anos, e reproduzir a experiência no atual romance, com a analistas de relações públicas Carolina Vachi, de 26. “Nos comunicamos com muito mais clareza, presença e franqueza”, diz ele. O incentivo ao diálogo é visto como uma das principais vantagens desse tipo de arranjo. Assim como a maior parte dos casais que se aventuram no modelo sem exclusividade, Flávio e Carolina estabeleceram algumas regras para evitar conflitos. Os dois combinaram nunca apresentar demais parceiros um ao outro, e amigos próximos estão fora de cogitação. A estudante de psicologia Milena Depentor, de 22 anos, leva uma relação aberta há um, a primeira que encara. Ela admite que a transição não foi fácil. “Era muito ciumenta e senti insegurança”, diz. E, embora se sinta julgada por quem não aprova sua escolha, também faz críticas aos adeptos mais radicais. “Eles tendem a falar com um ar de prepotência, como se fossem mais evoluídos, o que não tem nada a ver”, afirma.
A busca pelo novo modelo cresceu tanto que já existem aplicativos específicos para quem busca encontros passageiros fora do relacionamento principal ou sexo a três. O 3Fun, disponível no Brasil, se vende como uma rede para encontrar solteiros e casais “mente aberta”, enquanto o 3Somer faz o mesmo serviço e garante o anonimato dos usuários. As novas plataformas não diminuíram a popularidade do Tinder e de outros aplicativos mais tradicionais, nos quais os adeptos da relação aberta expõem claramente a preferência em seus perfis. Como se pode imaginar, a passagem de um relacionamento tradicional para um formato mais flexível, em geral, não é um passeio. A empresária mineira Thuany Ribeiro, 27 anos, conta que sentiu muito ciúme em sua primeira experiência não monogâmica, em 2015, com um namorado de cinco anos. Hoje, acha que superou as dúvidas e está mais madura para se adaptar. “Consigo estar com uma pessoa só, mas gosto da liberdade de saber que, se surgir o desejo, posso ir em frente sem magoar ninguém”, diz Thuany, que mora no Rio de Janeiro. Ela reclama, no entanto, de certo preconceito: “Muita gente relaciona minha forma de viver com promiscuidade, quando é só um jeito diferente de amar”. O tempo dirá se os relacionamentos abertos vão virar o casamento de cabeça para baixo e entrar, como tantas outras coisas neste mundo em mutação, para o rol do novo normal.
Publicado em VEJA de 24 de fevereiro de 2021, edição nº 2726