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Escândalo amazônico: os acusados no caso da apreensão recorde de madeira

Inquérito da PF a que VEJA teve acesso mostra como atua o lobby político para livrar os investigados

Por Juliana Castro, Eduardo Gonçalves Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 13h55 - Publicado em 30 abr 2021, 06h00

No discurso, o governo Bolsonaro até que vem tentando limpar a barra depois de ser alçado à incômoda condição de vilão ambiental do planeta. O problema agora é combinar a nova e bem-vin­da narrativa com a realidade. Um dia após ser elogiado na Cúpula do Clima da semana passada pelo tom moderado com que abordou o assunto, o presidente anunciou um corte de 24% no orçamento que inclui o Ministério do Meio Ambiente e as agências que supervisionam a área (depois, com a repercussão negativa, parte do valor foi recomposta). Na segunda 26, em outra prova de que há ainda um longo caminho entre um discurso cheio de promessas para autoridades internacionais e a prática, em depoimento às Comissões de Legislação Participativa e de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, o delegado Alexandre Saraiva , da Polícia Federal, resumiu aos parlamentares, sob protestos da ala bolsonarista presente à sessão, os detalhes da consistente investigação que conduz há meses sobre o maior escândalo amazônico dos últimos tempos. Iniciada no fim do ano passado, a operação Handroanthus GLO resultou na apreensão da maior quantidade de madeira ilegal da história da PF — 226 760 metros cúbicos de toras. Avaliada em cerca de 130 milhões de reais, a carga é suficiente para encher pelo menos 7 500 caminhões.

O confisco recorde foi só o ponto inicial de um caso que envolve suspeita de fraudes em documentos, empresas com um passado de multas ambientais milionárias, pesado lobby político junto aos altos escalões da República e grilagem de terras públicas. A atitude do governo federal aumentou ainda mais a dimensão do escândalo. No início, a operação acabou sendo celebrada nas redes sociais bolsonaristas com a divulgação de imagens da mega-apreensão ao lado do slogan ecoufanista “gigante verde”. Depois, no entanto, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles colocou-se frontalmente a favor dos madeireiros. Por esse motivo, Saraiva levou ao STF uma notícia-crime contra Salles. Na sequência, o delegado foi destituído do posto de superintendente da PF do Amazonas, mas permanecia à frente do inquérito até a quinta 29. No Congresso, a oposição passou a se mobilizar nos últimos dias para tentar criar a CPI de crimes ambientais. “Os deputados deixaram claro na audiência a falta de imparcialidade e de fundamento das posições do delegado, que segue em busca de holofotes”, diz Salles.

Arte Madeireira

As palavras, de novo, não encontram eco nos fatos. A reportagem de VEJA teve acesso ao processo de apreensão recorde de madeiras e a detalhes exclusivos do caso. As informações confirmam o tremendo enrosco ambiental em que o governo se meteu na tentativa de desqualificar o trabalho da PF. A história começou em 15 de novembro, quando agentes da corporação sobrevoavam o Rio Mamuru, na divisa entre o Amazonas e o Pará. Não demoraram a flagrar uma balsa encalhada lotada de toras de árvores nativas, na altura da cidade de Parintins, no Amazonas. A vistoria posterior realizada em terra confirmou a suspeita — as espécies nem sequer batiam com a documentação apresentada. A partir da prisão em flagrante do balseiro revelou-se um esquema ilegal ainda maior. Até hoje, por exemplo, não apareceu ninguém para reivindicar 70% da valiosa carga apreendida (se estivesse tudo o.k., por que não pedir de volta o que é seu?). Dos 30% restantes (ou seja, a parte que foi reclamada pelos donos), a PF identificou uma série de irregularidades na documentação. Por meio de laudos e fotos de satélite, a perícia concluiu que foram inseridos dados falsos, além da omissão de informações fundamentais. Para piorar, os agentes detectaram a retirada de árvores em unidades de conservação vizinhas às fazendas e vícios grosseiros na apresentação dos papéis, como falta de assinatura e da identificação das testemunhas da transação.

O delegado Alexandre Saraiva
ALVO - O delegado Saraiva: afastado da superintendência após conflito com o ministro – (./Reprodução)

Com base na própria documentação entregue pelas empresas madeireiras, a PF ainda começou a se debruçar sobre um problema maior que está na raiz de boa parte do desmatamento amazônico — a grilagem de terra —, o que tornaria a carga ilegal por “vício de origem insanável”, nas palavras do delegado Saraiva. A investigação esbarrou com um processo de concessão de terras públicas conhecidas como “Trairão” iniciado em 1986 no norte do Pará. A legislação paraense previa que os novos proprietários fossem residentes do estado e não tivessem outros imóveis rurais. No entanto, a documentação mostra o contrário — parte dos empresários era de outros estados, sobretudo da Região Sul. Ou seja: a quantidade de problemas indica que o caso merece, no mínimo, atenção de um governo preocupado com o meio ambiente, e não um atestado instantâneo de inocência para os envolvidos.

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LOBBY - O senador Zequinha Marinho (PSC-PA): encontro dos madeireiros com o vice-presidente Hamilton Mourão -
LOBBY - O senador Zequinha Marinho (PSC-PA): encontro dos madeireiros com o vice-presidente Hamilton Mourão – (Marcos Oliveira/Agência Senado)

A trama fica mais complexa ainda quando se olham as empresas envolvidas e já identificadas. Algumas delas possuíam uma ficha suja ambiental, caso do grupo empresarial Rondobel. Criada nos anos 90 pela família Belusso, com sede em Belém e Santarém, a companhia abastece pelo menos outras 25 madeireiras e serrarias da região amazônica, que têm entre seus clientes países como Estados Unidos, Bélgica, Alemanha, França e Itália. A análise da perícia levanta uma série de irregularidades na documentação das fazendas Agroanas I e II, de 2 350 hectares, que pertencem à Rondobel. Entre elas, informação “falsa” sobre “áreas consolidadas”, construções irregulares de estradas e pátios, “incompatibilidades” no cadastro rural, documentos “antigos” anexados ao processo e supostas fraudes na concessão de terras públicas. Entre 2001 e 2018, a Rondobel recebeu cerca de vinte multas ambientais aplicadas pelo Ibama, totalizando 7 milhões de reais. As infrações incluem desmatamento de uma área de 6 000 hectares para abrir uma pista de pouso, uso de sete motosserras sem licença e inserção de “informações falsas no sistema de controle ambiental”. Apesar do histórico, o grupo ganhou em 2014 um prêmio de sustentabilidade da Fecomercio e se apresentava na internet como uma empresa “preocupada em causar menor impacto na floresta” — a página foi retirada do ar.

Em nota, o Grupo Rondobel afirmou que não foi notificado pela PF e que vem buscando contato com as autoridades policiais para apresentar a documentação que provaria a origem legal da madeira e entender a justificativa para a paralisação das atividades, mas nunca foram atendidos pelos delegados. Ainda assim, informam ter apresentado documentação de forma voluntária por email. A empresa declarou ainda que os autos de infração estão com ações anulatórias em curso e nenhum deles está relacionado com as áreas objeto da investigação da Operação Handroanthus GLO. “A Rondobel reitera que não compactua com atividades criminosas e tem total interesse no esclarecimento dos fatos”, diz a nota, completando: “É essencial que a PF separe as madeireiras que operam corretamente daquelas ilegais”.

A atuação da Rondobel não se faz só presente no Pará, mas também em Brasília. Ela está entre as líderes do lobby político para tentar a liberação da madeira. A ação ganhou força quando entrou em cena o senador Zequinha Marinho (PSC-PA). Em janeiro, ele se queixou dos “excessos” cometidos pela PF e se declarou em defesa dos “5 000 empregos diretos” gerados pelo setor madeireiro na região do Baixo Amazonas. Junto com o senador Telmário Mota (Pros-RR), ele é um dos políticos mais atuantes em prol dos exploradores da Amazônia. Já chamou agentes do Ibama de “bandidos” e considerou uma ação recente de fiscalização “pior do que o Estado Islâmico”. Em 2020, postou um vídeo ao lado de Jassonio Leite, considerado pelo Ibama o maior grileiro de terras indígenas da Amazônia. Marinho não é nenhum neófito na política — tem trânsito livre com o presidente Jair Bolsonaro, foi vice-governador do Pará, deputado federal por três mandatos e estadual por dois — e suas ligações com esses grupos são históricas.

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arte Madeira 2

Foi Marinho que, em janeiro, conseguiu cavar uma agenda com o vice-­presidente Hamilton Mourão, levando a tiracolo para o encontro quatro representantes da indústria madeireira, entre eles, Fernanda Belusso, diretora da Rondobel. Desde o início, os empresários vinham se queixando de que não conseguiam acessar a PF para desfazer o “mal-entendido”. Dez dias depois, o senador esteve em uma reunião com o então diretor-geral da PF, Rolando de Souza, e, novamente, levou consigo Fernanda Belusso e outro parente, o advogado Felipe Belusso. Em março, Fernanda voltou a se reunir com o vice-presidente no Planalto, dessa vez na condição de diretora da Associação das Indústrias Exportadoras de Madeiras do Estado do Pará, acompanhada de outros representantes do setor.

Gestão Salles favoreceu esquema de contrabando de madeira, diz PF
VISTORIA – Salles, com uma parte da carga: “Os dados bateram certinho” – (Reprodução/Twitter)

No fim do mesmo mês, foi a vez de o ministro Salles embarcar rumo a Cachoeira do Aruã, no Pará. Sorridente, fez pose diante de uma parte da carga apreendida. “Etiquetas nas toras indicam o local exato de onde vieram”, afirmou. “Andamos na mata para conferir. Os dados bateram certinho. Agora faremos a confirmação pelo teste comparativo do DNA das amostras.” O que para Salles é um indicativo de legalidade, a PF vê como uma forma de “lavar” o que é irregular — uma tática muito utilizada pelos criminosos de misturar carregamentos para tentar iludir autoridades. Enquanto as investigações da PF prosseguem, as toras permanecem onde estão — a ideia é doá-las para a construção de casas populares, universidades e postos da Polícia e do Exército.

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A forte pressão dos empresários no episódio não acontece por acaso. Devido à demanda aquecida pelo produto, a atividade madeireira ilegal — e não mais o agronegócio — é o maior responsável pelo desmatamento da floresta hoje. Um levantamento do Instituto Imazon mostra que a destruição na Amazônia em 2020 foi a maior dos últimos dez anos. Cresceu 30% em 2020, em comparação com o ano anterior. Mais de 8 000 quilômetros quadrados de mata foram des­truídos — cinco vezes o tamanho da cidade de São Paulo. O Pará, onde foi feita a maior parte das apreensões da operação Handroanthus, ocupa o topo do ranking de estados que mais devastaram: concentrou 42% das derrubadas.

PRESSÃO - Manifestação contra o Brasil na Alemanha: ativo da sustentabilidade ambiental nunca esteve tão em alta -
PRESSÃO - Manifestação contra o Brasil na Alemanha: ativo da sustentabilidade ambiental nunca esteve tão em alta – (Monika Skolimowska/picture alliance/Getty Images)

No caso da madeira, há um problema adicional: a exploração ilegal não gera a mesma resistência no exterior, incluindo a exigência de selos e certificados, pois esse artigo brasileiro é visto como insumo, e não como produto concorrente, como ocorre com o gado e a soja. Nos últimos anos, o mercado nacional ganhou espaço lá fora ao mesmo tempo que antigos concorrentes, como Indonésia e Malásia, viram as suas exportações encolher porque devastaram suas matas. Em razão disso, um estudo do Instituto Brasileiro de Florestas prevê que a procura pelo material deve quadruplicar nos próximos anos. Em uma estimativa conservadora de especialistas e de autoridades, desmatar 100 hectares rende ao contraventor ao menos 500 000 dólares. Calcula-se que, por ano, saiam ilegalmente do país 1 milhão de metros cúbicos de madeira.

Evidentemente, a maior parte da carga apreendida na Handroanthus (90%) seria destinada à exportação. “A madeira amazônica está sendo vendida a preço de banana no mercado internacional. Um ipê, que demora 100 anos para crescer e dura mais 75 anos ao ar livre, está sendo negociado ao mesmo preço de um eucalipto, que cresce em uns cinco anos”, afirma o delegado Saraiva. Numa reunião recente com diplomatas de países europeus, ele os questionou se não achavam estranho que duas madeiras de qualidades tão diferentes fossem vendidas ao mesmo preço. O silêncio foi a resposta. “Existe uma conivência internacional”, conclui Saraiva.

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Trata-se, no entanto, de um cenário que está mudando rapidamente. Nos últimos anos, num processo que deve se intensificar com a ascensão ao poder do democrata Joe Biden, autoridades americanas passaram a cobrar cada vez mais o fim do desmatamento ilegal e a cooperar em investigações contra crimes ambientais. Um bom exemplo de frutos desse trabalho de parceria ocorreu em 2017, na Operação Arquimedes. A ação resultou na apreensão de milhares de metros cúbicos de madeira ilegal de mais de sessenta empresas em portos de Manaus e na prisão de dezenas de pessoas, inclusive do chefe do Ibama no Amazonas. As investigações apontaram a existência de um verdadeiro balcão criminoso de negócios em torno da concessão e fiscalização de planos de manejo florestal no estado, com a participação de servidores públicos, madeireiros, empresários e engenheiros florestais.

PROCESSO - Trecho do inquérito da PF: “GFs (guias florestais) são produtos de fraude” -
PROCESSO - Trecho do inquérito da PF: “GFs (guias florestais) são produtos de fraude” – (./.)

Na época da Arquimedes, o setor madeireiro também reclamou bastante a respeito de supostas injustiças e, como ocorre agora, buscou amparo em aliados políticos. Após encaminhamento do senador Telmário Mota, a PGR instaurou um processo para apurar supostas irregularidades praticadas pela PF na condução da Arquimedes. Ao final, o MPF concluiu que não havia nenhum abuso. Dono de fazenda e criador de galos de rinha (que, inclusive, foram declarados ao TSE), Telmário atua na linha de frente da defesa das companhias que são alvos da Handroanthus, chamando Saraiva de “xiita e covarde”. Por esse motivo, o delegado também o incluiu na notícia-­crime impetrada junto ao STF.

Além de devastar o meio ambiente, a atividade clandestina acaba prejudicando quem tenta atuar na legalidade e, em última instância, o Brasil — cuja imagem fica novamente arranhada no momento em que a sustentabilidade nunca esteve tão em alta lá fora. É verdade que muitos dos problemas nacionais se acumulam por décadas, como a fiscalização ineficiente que se mostra per­meável à corrupção, a indevida interferência política em órgãos de controle e os processos burocráticos ultrapassados. Mas é verdade também que o governo atual, através de declarações e posturas desastrosas, deu uma grande contribuição para aumentar a confusão em um setor tão sensível. Para reverter esse quadro, é preciso transformar bons discursos como o do Comitê do Clima em ações concretas — sem margem a ambiguidades ou interesses políticos imediatos. Não dá para fazer promessas numa reunião internacional, séria, e fazer vista grossa às irregularidades que se amontoam num caso de dezenas de milhares de toras, por exemplo. Como se percebe lendo esta reportagem, ainda há um longo trabalho a fazer para eliminarmos a imagem de vilões ambientais do planeta.

Publicado em VEJA de 5 de maio de 2021, edição nº 2736

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