Para novos jogadores o Flamengo tem dinheiro. Já para as indenizações…
Seis meses depois do incêndio que matou dez atletas adolescentes, o clube protela os pagamentos às famílias enquanto gasta fortunas com novos contratados
Longe, bastante longe do padrão da maioria dos times brasileiros, o Flamengo está jogando muito bem no campo financeiro. Em 2018, o clube arrecadou quase 550 milhões de reais — apenas o Palmeiras faturou mais — e investiu 100 milhões na contratação de craques. Neste ano, dobrou a aposta: cerca de 200 milhões de reais já foram gastos para reforçar a equipe e, até a quinta-feira 15, a diretoria discutia um contrato milionário com o astro italiano Mario Balotelli, que não vingou. Pois mesmo nadando em dinheiro o Flamengo vem arrastando quanto pode o pagamento de indenizações às famílias dos dez meninos mortos no incêndio que, em fevereiro, destruiu o alojamento da equipe sub-15 em seu centro de treinamento, no Rio de Janeiro. Há, enfim, verba para algumas coisas, mas para outras não. Passados seis meses da tragédia, somente dois acordos foram fechados. “Não queremos ficar ricos, e sim resolver tudo de maneira justa e rápida, porque cada vez que o assunto volta é um sofrimento”, diz a frentista Andréia de Oliveira, de 36 anos, que perdeu o filho, o goleiro Christian, de apenas 15.
O Flamengo primeiramente recorreu ao Ministério Público e à Defensoria Pública para intermediar as negociações, mas, diante da sugestão de que pagasse 5,6 milhões de reais a cada família, tirou o time de campo e pôs seus advogados para tratar do caso. Sua proposta inicial: 700 000 reais por danos morais e pensão de um salário mínimo por dez anos. Ninguém aceitou. Desde então, os valores foram elevados a patamares não divulgados, porém só os pais de Áthila Paixão e Gedson Santos fecharam acordo com o clube. No caso de outra vítima, Rykelmo de Souza, o pai topou receber 500 000 reais, mas a mãe não. Moradora de Limeira, no interior de São Paulo, a faxineira Rosana de Souza é autora da primeira ação judicial contra o Flamengo. “Eu me senti humilhada”, diz. Rosana quer receber 6,9 milhões de reais do clube e da CBF, que deu o aval para o Flamengo formar jogadores.
Os advogados das famílias em litígio com o clube consideram que as indenizações têm de levar em conta os valores que viriam a ser embolsados pelos atletas. Só por danos materiais, a família de Christian pretende pedir 10 milhões de reais na Justiça. “Meu filho lutou muito, abria mão de festas. Quando havia jogo no domingo ele nem voltava para casa”, lembra Andréia. Pai do menino Bernardo, o administrador de empresas Darlei Pisetta, de Indaial, Santa Catarina, reitera que ninguém pretende simplesmente se beneficiar da tragédia. “Não há o que pague as perdas, mas esse assunto precisa ser resolvido. O Flamengo perdeu atletas, nós perdemos nossos filhos”, diz. Segundo o vice-presidente jurídico do Flamengo, Rodrigo Abranches, o clube vem pagando 5 000 reais por mês aos familiares que ainda não fizeram acordo.
Ao contrário das famílias dos atletas que morreram no incêndio, todos os responsáveis pelos dezesseis sobreviventes aceitaram a proposta de indenização do clube: segundo os advogados, 20 000 reais para cada um. Nesse caso, dizem, apressou a concordância o receio de retaliação que pudesse afetar a carreira dos jovens — a maioria continua treinando no Flamengo. O único sobrevivente ainda com sequelas graves em decorrência do incêndio é Jhonatha Ventura. As queimaduras deformaram sua mão direita, que perdeu os movimentos, e ele terá de ser submetido a uma cirurgia no esôfago para sanar a persistente dificuldade de engolir alimentos e até respirar. Pessoas próximas dizem que o Flamengo se comprometeu a mantê-lo nos quadros do clube mesmo que não volte a jogar futebol.
Novos processos que requerem indenização para as famílias dos mortos devem chegar à Justiça depois da conclusão do inquérito policial que investiga as causas do incêndio e que já apontou a responsabilidade do clube pelas más condições de segurança do centro de treinamento, o Ninho do Urubu. Oito pessoas, entre elas Eduardo Bandeira de Mello, presidente do Flamengo na época, foram indiciadas, mas o Ministério Público pediu novas diligências, que devem ser concluídas nas próximas semanas. A defensora pública Cíntia Guedes, que continua a atuar no caso, critica a atitude do clube de postergar o desfecho das negociações. “Cada etapa representa mais dor para as famílias”, aponta ela. Flamengo desde criança, Cíntia diz que a tragédia e a atitude dos dirigentes mudaram sua relação com o time rubro-negro: “Não dá mais vontade de torcer”.
Publicado em VEJA de 21 de agosto de 2019, edição nº 2648